Matéria publicada no Jornal Correio da Manhã
Por Paschoal Carlos Magno – Rio de Janeiro – 08.10.1948

Teatro do Gibi, O Casaco Encantado e o Teatro do Polichinelo

… Minha sobrinha Sonia, que tem sete anos somente, me pede: – Me leva para passear, titio? Fico numa situação inquietadora. . Era bom sair com esse palmo de gente, mas já deve estar fatigada de andar comigo de automóvel de capota arriada, olhando a multidão que passa no fundo dos outros automóveis, ônibus, bondes. Isso não a diverte mais. Nem o brinquedo, que era tão agradável nas primeiras vezes, de construir castelos misteriosos, enfeitados de conchas e folhas, com o areia da praia. Não a seduz a visita a cinema, pois nem todos os programas são feitos pelo Walt Disney e seus amigos chamam-se Pato Donald, Mickey Mouse, Pluto, o cachorro de orelhas compridas que nem suas tranças de meninazinha irrequieta.

– Me leva a um teatro, titio? Hesito. Lembro-me dos cartazes colocados na face de cada bilheteria “Impróprio para menores de 18 anos”. Vem-me à memória a carta de um adolescente: “O senhor aconselha ir ao teatro. Vontade não me falta. Mas tôtadas as peças agora em cena são impróprias para minha idade. Meu pai só tem um recurso: me deixa ir é ao circo”. Boa ideia. Se levasse minha sobrinha ao circo? Qual? Mas no Dúdú, plantado na praça da Bandeira estão representando um melodrama que não é para sua idade. Onde um circo que seja mesmo circo com palhaços, trapezistas, mulheres e vestidas de malha branca, flutuando no ar sobre um fio?

Sei por acaso, que “Teatro do Gibi” aparecerá na praça Saenz Peña. O pequeno palco ramado sob as árvores. Mãos invisíveis movendo atores liliputianos feitos de madeira, cartão, estopa. Canários de brinquedo, mas muito bem desenhados. Distribuição inteligente de luzes na rampa e no fundo do palco, Dona Iolanda Fagundes, nos bastidores, à frente de um pequeno exército de artistas que dão suas mãos, sua voz e sua sensibilidade para divertir, impressionar centenas, milhares de crianças com as histórias povoadas de heróis, animais estranhos, flores que falam, fundo de mar que se anima com voz de gente, que são esses alguns dos personagens apresentados pelo “Teatro do Gibi”.

Há anos que o anúncio da visita do “Teatro do Gibi” é uma espécie de sopro novo, de primavera. Crianças de hospitais, orfanatos, escolas; crianças soltas nas ruas ao Deus-dará; crianças vigiadas permanentemente por governantas austeras; crianças de pés descalços ou mudando de sapato novo cada dia – todas pedem aos mais velhos que as ceream, sejam pais, irmãos menores enfermeiras, professoras – “O Teatro do Gibi” vem mesmo?” Como devem ser para cada uma, extremamente gostosos os preparativos que antecedem ao espetáculo: chegam os caminhões, o que traz os apetrechos de cena, tais como pranchas, cortina de boca, luzes para o palco, e o outro que despeja moças e rapazes que, depressa, com martelo, pregos, armam a cena, e vão depois abrir umas caixas maiores que as de sapatos e do seu bojo tiram, mortas, inanimadas, figuras que em pouco tempo cantarão, falarão, dançarão para seus espectadores de meio palmo de altura. Há anos que “Teatro do Gibi” tem sido para nossa criança desamparada de alegrias próprias para sua idade, um amigo bom cuja visita é saudada com palmas, e os nomes de seus bonecos são hoje familiares a milhares de pequeninos.

Em 1944, meu velho amigo Roberto Marinho, diretor de “O Globo”, atendendo a um apelo que lhe fiz, resolveu fundar esse teatro para crianças. Meu plano era que, sob os auspícios de seu importante vespertino, se fundasse uma companhia de atores adultos para espectadores infantis. Preferiu contudo iniciar as atividades do ” Teatro do Gibi” com bonecos, pois encontrou na Sra. Iolanda Fagundes uma colaboradora admirável para a execução do seu programa.

Recentemente a escritora Lucia Benedetti, que, como cronista, é das mais sutis que possuímos, me telefonou: – Escrevi uma peça para crianças. Que fazer dela?” Combinamos um almoço na A. B. I. Levou-me o rolo dos três atos datilografados. Abri-o no “lotação” que me devolvia ao Itamaraty. E logo nas primeiras cenas desatei a rir. A história dos alfaiates que costuravam um casaco para o Rei, perseguidos por um bruxo, que um deles transforma em sapo gorducho, era realmente uma delícia. Contos iguais àqueles, eram os que minha preta Sá Virginia inventava para embalar minha infância. Nessa mesma noite corri ao Ginástico. Não quereriam Henriete Morineau e os “Artistas Unidos” representar essa peça para crianças? Henriete Morineau entusiasmou-se com a ideia. – Deixe-me a peça”. Na manhã seguinte acordava com sua voz: – Faço questão de montar “O Casaco Encantado”.

Logo o Ginástico começou a ferver de projetos.

– Será que o Graça Melo – dizia-me Henriete Morineau – gostaria de dirigir essa fantasia?

Graça Melo, mal consultado, acedeu prontamente. Nilson Pena, que estava próximo, exibira minutos antes uns desenhos seus de trajes para uma comédia molierésca. – E se você fizesse os cenários e os figurinos? – aventurou a diretora e primeira atriz de “Os Artistas Unidos”.

Nilson Pena ficou de tal maneira comovido que perdeu a voz.

“O Casaco Encantado” apaixonou a equipe do Ginástico. Cada ensaio é uma festa para os intérpretes. Fregolente, com seus olhos azuis de quem nunca fez mal a ninguém, informa: – “Vou ser sapo, sabe?” Henriete Morineau já enfeitou a parede de seu camarim com uma bruxa do tamanho de sua mão aberta: – será minha maior criação artística”. Dary Reis namora as roupas pesadas do rei barrigudo que vai interpretar. Graça Melo exulta: – “Serei o mais diabólico dos feiticeiros”. – “E você, Flora May?” – “Eu? Princesa, com um chapéu de cartuxo e roupa pintalgada de estrelas. O Dary Reis será o alfaiate que vira príncipe para casar comigo. Dona Maria Castro, uma Avozinha que conta histórias, aos compassos do “Relógio” que o Nilson Pena interpretará, enquanto Orlando Guy é um manequim que dá pulos e Niete Junqueira um pagem de franjinhas”.

A primeira récita do “Casaco Encantado” num gesto muito bonito de Henriete Morineau e os “Artistas Unidos” reverterá totalmente para o Teatro do Polichinelo, das crianças da União das Operárias de Jesus para todas as crianças, o qual estreará em novembro, no próprio Ginástico, sob os auspícios do “Teatro do Estudante” com a fantasia portuguesa “S. João subiu ao Trono”, sob a direção de Dona Ester Leão. O Teatro do Polichinelo tem já sua primeira peça pronta desde março. Sem um teatro para exibir-se. Com cenários e figurinos de Pernanbuco de Oliveira acabados. A música é de Yelê Bitencourt, primeiro dançarino do “Conjunto Coreográfico Brasileiro” e medalha de ouro 1947, da Associação Brasileira dos Críticos Teatrais, que manteve duramente muito tempo, sob a direção dos Srs. José Lyra e Olavo de Barros, um admirável e simpático “Teatro Infantil” nos mesmos moldes do “Teatro do Polichinelo”.