Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 29.03.1985

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Sonho de uma Noite de Verão – Saudades de Mickey Rooney

O simples esforço de sair de si, de abandonar as memórias de infância e adolescência e deixar de repetir teatralmente “meus 8 anos”, sem dúvida, por si só, já seria de certo modo louvável. A simples percepção do texto como um outro, e não apenas como extensão umbilical do próprio desejo de entrar em cena, que vem marcando as tentativas mais recentes do teatro infantil carioca de encenar clássicos, parece indicar trilha mais difícil e por isso mesmo obrigar atores e encenadores a um aprimoramento técnico bem maior do que a mera dramatização de fantasias infantis grupais, assunto característico de qualquer montagem do início dos anos 80, exigia deles. O Sonho de uma Noite de Verão, que acaba de estrear no Teatro Glauce Rocha, com direção de Moacir Góes, é, nesse sentido, exemplar.

O texto de Shakespeare é inequivocamente um interlocutor difícil para qualquer encenador. Basta lembrar a recente rasteira que O Rei Lear deu em Celso Nunes. Ainda mais em se tratando do segundo trabalho de direção de Moacir Góes. E, entre erros e acertos, ao menos se consegue erguer um espetáculo plenamente assistível, que não perde o ritmo nem a atenção da plateia. Uma verdadeira proeza. Pena que, em se tratando de uma comédia da qualidade de Sonho de Uma Noite de Verão, ritmo só não baste. Sobretudo quando ele é conseguido com o sacrifício da linguagem e do enredo originais.

E não deixa de ser estranho que um elenco tão jovem, diretor iniciante e alguém como Lenita Plocinsky, a responsável pela adaptação do texto original, tenham optado pela simples supressão do motivo da disputa entre Titânia e Oberon talvez por um pudor injustificado de chocar a plateia adulta dos espetáculos infantis com a querela amorosa dos reis dos elfos e fadas em torno das atenções de um jovem indiano. Não que isso tenha sido totalmente retirado das falas dos atores. Fala-se, sim, de um menino indiano. Mas só isso. Ora, qualquer espectador que não esteja em estado letárgico e, como é de supor numa plateia infanto-juvenil, que não conheça Shakespeare a fundo, há de se perguntar que menino indiano é este. Mas a adaptação de Lenita Plocinsky prefere não responder. E o desejo de Oberon de adormecer magicamente Titânia se torna absolutamente gratuito. Assim como as ações equivocadas de Puck. Pois se a origem mesma das confusões amorosas provocadas por ele eram o menino e o ciúme de Oberon, e são elas mesmas fruto de uma situação amorosa, suprimida a explicação, perde-se o laço estritamente passional que amarra todo o texto de Shakespeare.

Outro problema: a diferença de registro entre as falas dos personagens nobres e populares. Perceptível no texto de Shakespeare e padronizadas as falas na montagem de Moacir Góes, o diretor parece se sentir obrigado a enfatizar as diferenças de classe dos personagens na postura, no modo de andar e na gesticulação. Por isso os atores que representam os nobres andam como se desfilassem numa passarela enquanto os que interpretam os pobres artesãos tropeçam, fazem caretas e carregam caricaturalmente os próprios gestos. Recurso pobre que faz até de Quince, o carpinteiro, personagem quase ridículo. Igualmente equivocados alguns dos trajes idealizados por João Gomes, que acaba de sair de ótimo trabalho de figurinista em Palhaçadas. O seu “Egeu” lembra uma almofada indiana e o infeliz Oberon um príncipe de desfile de fantasias carnavalescas. Interessantes, no entanto, os cenários idealizados pelo próprio João Gomes. Sobretudo o grande mapa que serve de palco às situações palacianas. Ótimo também o trabalho de direção musical de Gustavo Ariani e de iluminação de Maneco Quinderé, muito mais responsáveis pela criação de climas compatíveis com o perfil dos personagens do que os próprios atores.

A lamentar, sobretudo, que nesse esforço de produção e recriação de um clássico, tenha faltado maior ousadia a Moacir Góes já que se propunha a adaptar o original. Não, é claro, em coisas como colocar Puck imitando um motoqueiro. O que soa ridículo principalmente porque não há outras referências do gênero no espetáculo. Ou esquecer totalmente de esvaziar a cena, excessivamente cheia, nas últimas falas da peça. A rigor capazes de proporcionar belíssimos momentos a um bom Puck. Como foi Mickey Rooney na inesquecível versão cinematográfica da peça. De que é impossível não sentir saudades assistindo ao espetáculo no Teatro Glauce Rocha.