Silvia Aderne

O Começo

Comecei a fazer teatro como educadora. Não tenho tradição de teatro na família, embora meu bisavô, que estudou em Coimbra, quando voltou para Recife, sua terra, abraçou a causa dos escravos e fazia espetáculos para angariar fundos e liberta-los. Outro avô gostava de fazer teatro de bonecos para as crianças da vizinhança, utilizando como palco a parte inferior da porta de entrada da casa, aquelas que eram cortadas ao meio. Sempre tive uma ligação muito grande com crianças e um fascínio pelo universo infantil.

Fui professora de alfabetização de crianças, em Minas Gerais, onde estudei e morei por sete anos. Sempre gostei muito de contar histórias. Minha avó sempre me contou histórias, minha mãe também. Acho que minha escolha pelo teatro começou com as histórias contadas.

Em 1962 vim para o Rio de Janeiro para fazer o Curso Intensivo de Arte na Educação, para professores, na Escolinha de Arte do Brasil, onde poderia me aperfeiçoar, conhecer novas pessoas, novas formas de fazer o que já fazia lá em Minas. Enfim, abrir os meus horizontes. E realmente meus olhos se abriram para muitas coisas. A Escolinha de Arte do Brasil, quando eu conheci, era na Marechal Câmara, era totalmente voltada para a criança e o jovem, dando-lhes possibilidade de vivências na área de artes: teatro, música, artes plásticas… Foi aí que eu comecei a fazer teatro com crianças: Teatro de Mãos, Teatro de Pés, Teatro de Silhueta, Teatro de Sombra, Teatro de Luvas. Lá eu aprendi a fazer muitos tipos de bonecos e foram eles os grandes responsáveis por eu fazer teatro.

Nessa Escolinha de Augusto Rodrigues, seu fundador, grandes nomes das mais variadas áreas da arte, cultura e da educação se reuniam, partilhando do dia a dia dos alunos que a frequentavam. Convivíamos com Noel Nuttels, Ferreira Gullar, Nise da Silveira e outros tantos… Foi uma grande experiência. Vim para ficar três meses e acabei ficando seis anos. Um curso atrás do outro. Nessa ocasião conheci Ilo Krugli e Pedro Dominguez num curso de teatro de bonecos que durou oito meses.

Além de exercícios vocais onde pude perceber a potência que nós podemos alcançar só usando a voz, eles me ensinaram muitas técnicas de teatro de bonecos e acabei convidada a participar de seu grupo Teatro de Bonecos de Ilo e Pedro. Viajamos pelo Brasil, experimentando, criando e participando dos primeiros festivais de Teatro de Bonecos. Apresentamos muitas peças, com “milhares” de bonecos que o Ilo e o Pedro criaram. Eles revolucionaram o teatro infantil começando pelos bonecos.

Depois do Teatro de Ilo e Pedro nos anos 60, em 1974 Ilo criou História de Lenços e Ventos, do qual participei como atriz na primeira montagem no MAM RJ. Também atuei nos espetáculos Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo em 1975, que teve duas versões uma para crianças, que apresentávamos a tarde e outra para adultos, que apresentávamos a noite no MAM, Pequenas Histórias de Garcia Lorca em 1976, uma versão para adultos. Depois Ilo criou uma versão para crianças, da qual não participei.

O Hombu

Quando Ilo foi para São Paulo em 76, nos separamos enquanto grupo e criamos Hombu em Janeiro de 1977. Éramos cinco: Regina Linhares, Beto Coimbra, Sérgio Fidalgo, Tarcisio Ortiz e eu e nos unimos para escrever A Gaiola de Avatsiú. Começamos nosso trabalho timidamente, querendo continuar com o trabalho que já desenvolvíamos para crianças. Escrevemos um pouco em Arraial do Cabo, onde tínhamos uma casinha alugada; o Beto Coimbra escrevia as músicas.

Com este trabalho ganhamos o primeiro Molière concedido a um grupo de teatro infantil além de outros prêmios de Produção e Direção do antigo SNT e da ACET. Passamos dois anos fazendo a peça e viajando. Arranjamos passagens e fomos à Europa, carregando o cenário nas costas. Nós levávamos palha, folha seca. Na alfândega abriam os sacos, achando esquisito tanta folha seca. Acabamos desistindo de levar as folhas. Chegamos até a fazer um espetáculo sem folhas porque não nos demos conta que no inverno da Inglaterra não encontraríamos folhas.

Quando formamos o grupo pensamos num nome e escolhemos Hombu. No meio dessas pesquisas encontramos um livro lindíssimo sobre índios brasileiros, chamado Hombu, palavra do dialeto Kraó que significa “Venha nos ver”, “Veja-nos”. Achamos o nome bonito, então demos esse nome para o nosso grupo. Depois de dois anos viajando nós chegamos à questão “Como continuar?” Esse era o “X” do problema. A essa altura as dificuldades também começam a aparecer. Ficávamos pensando: “Como sobreviver?”, “Será que vamos ter que fazer espetáculos de índio o resto da vida?”, “Será que só vamos fazer teatro para crianças?” No meio de todas essas questões, veio a solução: demos uma cambalhota e viramos palhaços.

Através da boca do palhaço, resolvemos falar da nossa crise. Crise de sobrevivência e de integração. Escrevemos, o Fala Palhaço que estreou em junho de 1979. Para o cenário e adereços nós continuamos usando o bambu. Era um material leve, bom de carregar. Foi o primeiro espetáculo infantil que estreou no Villa Lobos. Era um espetáculo sucinto, levava 50 minutos, como A Gaiola, mas era um espetáculo trabalhoso com muitos objetos, e adereços. As crianças se identificavam muito com os personagens. Não era uma história dos bons contra os maus. Ficamos em cartaz e viajamos por mais dois anos. Com Fala Palhaço também ganhamos prêmios, de Direção, de Interpretação. Eu ganhei como atriz interpretando uma menina levada.

Começamos novamente a pensar sobre um novo espetáculo, mas insatisfeitos com todas as nossas pesquisas, e indecisos sobre o que fazer depois de Fala Palhaço, nós lembramos de um espetáculo que havíamos visto em 1979, quando viajávamos com A Gaiola de Avatsiú. Conhecemos um grupo português em Lisboa, do José Caldas, e eles tinham montado Ou Isto ou Aquilo de Cecília Meireles. Pensamos: “Porque não falar poemas para crianças?”. Resolvemos então montar Ou Isto ou Aquilo. Mas completamente diferente do espetáculo que vimos em Lisboa. Do nosso jeito, claro. Foi um desafio: “Como dizer poemas de um jeito interessante?”.

Queríamos sair do hermetismo com que os poemas geralmente são ditos. Queríamos fazer de forma muito lúdica, com brincadeiras. Escolhemos 24 poemas do livro e sem usar uma palavra nossa, interligamos com um fio condutor: o Ciclo da Vida. O medo agora era: “É um espetáculo fácil demais de fazer”. Era curto, tinha trinta e cinco minutos. Depois de estrear, entretanto, todos acharam o espetáculo uma filigrana. Delicado, e o que era mais surpreendente, parecia transbordar emoção. Emocionava até aos adultos com a sua simplicidade. As crianças ficavam encantadas com o cenário e figurino feitos de papelão. Linha Chapada. Tínhamos pouco dinheiro, para variar. Isso foi em 1981.

Em 1983, montamos nossa única peça para adulto, A Comédia do Coração, de Paulo Gonçalves, dirigida por Amir Haddad, que fez uma curta temporada. A seguir tentamos ainda, montar mais um espetáculo adulto para comemorar os dez anos do Hombu. Um espetáculo adaptado de alguns livros da Adélia Prado, dirigido pelo Nelson Xavier. Foi uma experiência muito interessante conduzida pelo Nelson, mas aí, a Fernanda Montenegro estreou os textos que nós estávamos montando. Resolvemos parar.

Em 1984, fui convidada a participar do elenco permanente do Teatro Ziembinski com direção de Walmor Chagas, onde durante dois anos só fiz teatro adulto, com montagens de autores brasileiros.

O Hombu ficou parado, embora Beto e Sérgio tenham feito nessa ocasião uma nova montagem de Gaiola de Avatsiú em Brasília, com elenco local. Algum tempo depois, o Beto voltou de Brasília e resolvemos fazer uma retomada histórica, remontando todas as peças de nosso repertório inclusive História de Lenços e Ventos de nossas raízes teatrais. Foram seis meses de trabalho no Teatro Cacilda Becker, uma remontagem atrás da outra.

Em 1992, em comemoração aos quinze anos do Hombu, criamos um show musical. Convidamos Bia Bedran, para interpretá-las e Ney Matogrosso para dirigir. Chamamos de As Cinco Pontas de Uma Estrela e era baseado nas músicas dos espetáculos que já tínhamos realizados.

Novamente viajamos muito, fizemos oficinas, trabalhamos com a FUNARTE, e em 1995 resolvemos montar um espetáculo novo, A Casa da Madrinha, de Lygia Bojunga Nunes e adaptação de Eloy Araújo.

Chamamos o Luís Carlos Ripper para dirigir. Foi um encontro muito bonito que tivemos com o Ripper. Ele deu uma conotação ao nosso novo espetáculo que eu no início achava que as crianças não iam acompanhar a história. Eu acreditava que a montagem era meio adulta, muito séria; que as crianças não iam entender as músicas. Mas quando as músicas se juntavam com o movimento ficava tudo muito claro e elas cantarolavam as canções, mesmo sendo as letras longas e difíceis.

Tínhamos planos de adaptar Sidharta com o Ripper. Vimos O Pequeno Buda no cinema… Mas, então, o Ripper faleceu, causando uma comoção e mudanças de plano no grupo.

O Melhor é Viajar…

Uma das melhores coisas que me aconteceu, foi viajar com o meu Grupo pelo interior do Brasil, tendo contato com a realidade brasileira, adaptando as peças de nosso repertório para todas as situações. Viajando pelo Brasil, encontramos quando muito, crianças que já viram circo, mas nunca teatro.

Nosso grupo não tinha tradição de um teatro de rua, mas fizemos espetáculos na rua, em praças, dentro de igrejas, em rodoviária e em presídios. Foi maravilhoso! Realizar bem nosso trabalho seja em que lugar for. São experiências inesquecíveis. Essa é a beleza do teatro.

Novo Fôlego

Atualmente, estamos adaptando uma trilogia do Betinho (Herbert de Souza). A Trilogia das Centopeias. Acabamos de gravar um CD com músicas e poemas do espetáculo Ou Isto ou Aquilo. Nosso primeiro CD em vinte e poucos anos de trabalho. O lançamento deste CD será acompanhado de uma temporada do espetáculo no Teatro do Museu da República. Continuamos tentando levantar recursos para viabilizar a Casa Hombu, na Lapa, onde queremos fazer o que sempre sonhamos: uma casa de teatro para crianças e jovens. Um centro de muitas atividades que podem ser feitas nas praças e em outros locais.

Criança

Minha opção pela criança partiu de minha ligação com a educação e com a arte. Primeiro com crianças, depois para crianças. Primeiro com bonecos, depois bonecos e atores… A partir daí, nunca mais parei e nem pretendo parar.

Criança é a base da sociedade. O que podemos esperar de uma criança no futuro se ela não recebe cultura. Criança precisa de teatro ainda mais que o adulto. Não vou deixar nunca de fazê-lo. É isso que me tem feito feliz todos esses anos.

Do Grupo HOMBU

1977 – A Gaiola de Avatsiú, direção Grupo Hombu
1979 – Fala Palhaço, texto e direção Grupo Hombu, Teatro Villa-Lobos
1980 – Fala Palhaço, texto e direção Grupo Hombu, João Caetano
1981 – Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles, direção Grupo Hombu, Teatro Cândido Mendes (1993, 1997, 2004)
1990 – Fala Palhaço, texto e direção Grupo Hombu, Teatro Cândido Mendes, Teatro da Barra
1991 – A Gaiola de Avatsiú, texto e direção Grupo Hombu
1991 – História de Lenços e Ventos, texto e direção Ilo Krugli
1992 – As Cinco Pontas de Uma Estrela, direção Grupo Hombu
1993 – Ou Isto ou Aquilo, direção Grupo Hombu
1995 – A Casa da Madrinha, direção Luís Carlos Ripper, Teatro Delfim, Teatro Ziembinski
1997 – Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles, direção Grupo Hombu
1997 – A Gaiola de Avatsiú, texto e direção Grupo Hombu
2004 – Ou Isto ou Aquilo, de Cecília Meireles, direção Grupo Hombu
2004 – A Zeropéia, de Herbert de Souza, direção Ilo Krugli, Teatro do Jóckei
2007 – Hombu 30 anos, Evento Comemorativo

1965 – O Ovo de Ouro Falso, de Pedro Touron, direção Ilo Krugli, Teatro Princesa Isabel
1966 – El Retablo de Maese Pedro, de Manuel de Falla, direção Gianni Ratto, Sala Cecília Meireles
1966 – Senhor Rei Mandou Dizer, direção Ilo Krugli
1968 – História do Príncipe Africano e o Talismã Escondido com as Aventuras do Anjo de Ouro que Veio da Espanha, direção Pedro Touron, TeatroJoão Caetano e Teatro Toneleros
1974 – Estórias de Lenços e Ventos, direção Ilo Krugli, MAM – Museu de Arte Moderna
1975 – Da Metade do Caminho ao País do Último Círculo, direção Ilo Krugli
1976 – Estórias de Lenços e Ventos, direção Ilo Krugli, Teatro Gláucio Gill
1985 – A Constituinte da Nova Floresta, direção Rodrigo Farias Lima, Teatro Vanucci

1983 – A Comédia do Coração, de Paulo Gonçalves, direção Amir Haddad

Depoimento dado à Antonio Carlos Bernardes, no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, em 21 de agosto de 2000.