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Com um milhão de livros vendidos, escritora e pedagoga participou do 4º Fenatib fala sobre a crise da educação

“Maravillhança” ou “andança procurante” são os neologismos que reluzem na fala da escritora Fanny Abramovich e que descrevem o ato da leitura e a curiosidade intelectual que a move nos mundos da pedagogia e da literatura. Bacharel e licenciada em pedagogia pela Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras pela USP, Fanny tem seu currículo de docente centrado na didática e na literatura infantil. Desse convívio com a alma humana extraiu a matéria viva para seus 40 livros, entre os quais a ficção infanto-juvenil “De Surpresa em Surpresa” (Editora Braga) e relato de experiência “Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices” (Editora Scipione).

Um milhão de livros vendidos, a menina irreverente que se deslumbrava com a imensidão da biblioteca do Colégio Mackenzie (e descobriu no antigo flanelógrafo” os rudimentos das artes cênicas), mantém a alma acesa e segue o seu destino “perguntante”. Um destino sui generis que a fez viver, com muita propriedade, o papel de Emília no seriado televisivo “O Sítio do Picapau Amarelo”, da obra de Monteiro Lobato, autor esse que, segundo Fanny, é o seu “único amor eterno”.

Parte desse percurso pôde ser revisto na palestra “Literatura Infantil: Gostosuras e Bobices”, proferida por Fanny Abramovich no 4º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (Fenatib). Leitora assídua de poetas como Lorca, Pessoa e Drummond, Cecícia Meireles, Adélia Prado e Coroa Coralina, além de sua descoberta recente, Manoel de Barros, a escritora fala de leitura, literatura, educação e de Brasil com a desenvoltura de quem nunca perdeu os mistérios mais profundos da alma humana, e ,por isso, não é douta ou erudita, mas muito sensível e inspiradora.

A Notícia – A tua relação “voluptuosa” com os livros te leva a reler, com outros olhos, a mesma obra e acabas redescobrindo coisas novas ou as que a tua experiência acrescenta. Os livros são matéria em movimento?

Fanny Abramovich – Para mim, estar me revendo e, ao me rever, revejo que tipo de relação que eu tinha: se era uma relação de garra, de tesão, de entrega. Porque se não é para ser fissurante, ou orgasmático, não é sua hora para estar lendo aquilo. Não vou dizer que deva ser como em Vandré, quem sabe faz a hora”, mas deve-se esperar a sua hora. A relação com o livro tem que ser de grude, ou de liga.

A Notícia – Transferes para a escrita de ficção essa mesma relação voluptuosa que tens como leitora?

Fanny – Claro, porque se não houver tesão, desisto. Sinto que, num determinado momento, uma história está empacada porque não tem ritmo. Então digo: ah, é? Salvo, desligo, pego um vídeo de Fred Astaire, vejo, venho dançando e recupero o ritmo do texto. Há vezes em que a idéia é legal, mas não se encontrou o tom. Não anda e nem desta. Então, a escrita tem de ser voluptuosa, de achados, mesmo sabendo que, no processo, se vai encontrar muita frase mal-construída ou sem graça. Ou a história me pega e, por isso, vai pegar o leitor, ou, então, desisto.

A Notícia – A propósito, escreves tendo em mente um tipo de leitor ou esse leitor ideal existe em ti mesma?

Fanny – Sim, escrevo para mim mesma, porque senão vira mentira e estaria escrevendo par um hipotético leitor, um que existisse apenas na minha cabeça. Por que não assumo que sou eu? (Risos) Não acho que exista um assunto para criança, um assunto para jovem ou um assunto para o adulto; os assuntos são todos possível, sempre. O que há é uma especificidade de linguagem. Por exemplo, o meu livro “Que Raio de Professora sou Eu?” é uma novela escrita para meninos de 7a. ou 8a. série. Qual não foi minha surpresa e meu espanto quando o livro foi adotado na pós-graduação em educação. O que achei exagero. Então, você não sabe quem é esse leitor.

A Notícia – Um milhão de exemplares vendidos sinalizam a intimidade que tens com o leitor brasileiro. Quem é esse desconhecido?

Fanny – Fiquei muito espantada com esse um milhão de livros e me perguntava: o que significa isso em termos de leitores? Em jornal, por exemplo a relação é de três leitores para um exemplar. Então, certa vez, fui falar em uma escola para lá da periferia, que tinha um único exemplar de um livro meu, com fita crepe, band-aid, quase mercúrio cromo, e que foi lido e devorado por sessenta crianças. Em compensação, fui falar em uma escola grã-fina que havia comprado 90 exemplares que nunca tinham sido lidos ou tocados.

A Notícia – À luz da tua experiência como docente e escritora, a que atribuis a distância cada vez mais abissal entre livros e leitores?

Fanny – Devo reconhecer, como mulher de esquerda, que eles, os tecnocratas do regime militar, foram muito competentes: São gerações que não têm mais remédio. Os professores, inclusive, estão cada dia mais idiotas, porque não tem mais curiosidade. Professor que não se pergunta, que não se move, não tem jeito. A perda salarial e de status e o fato de o professor ter virado profissão de quinta categoria fazem parte do jogo. Neutraliza-se a figura, o papel e a junção do professor; inventa-se faculdade em qualquer lugar; torna-se obrigatório cursar a universidade, para o quê ninguém sabe, e se perpetua essa relação. O jovem fica na universidade e faz mestrado, doutorado e nunca recebe “alta” (risos), perdendo anos de sua vida e, ao final, escreve uma coisa convencional que ninguém vai editar e ninguém vai ler. Além do mais, fala-se de Internet e, no Brasil, não há giz e nem energia elétrica em muitas das escolas. Isso é uma loucura.

A Notícia – O alto custo do livro não contribui com essa situação insana?

Fanny – Não é obrigatório que se tenha o livro em casa, mas que haja o livro em casa, mas que haja na biblioteca de cada escola. Livro não é um bem de consumo. Apesar de ser caro, é mais barato do que o que se come no McDonald’s.

A Notícia – O que seria, então, uma política de leitura mais próxima da, em tuas palavras, “maravilhança”?

Fanny – Ter bibliotecas, ter livros, bibliotecários e não grampeadores de livros; ter gente que leia e que se fissure num livro; ter gente, dentro das bibliotecas, a fim de mergulhar e de suscitar a leitura e não ficar na paralisia burocrática de meramente carimbar as obras. Como cidadã pago imposto o bastante para que se tenham livros nas bibliotecas. Com a leitura se desenvolve o senso crítico. Se o professor, os pais, as tias, lessem, a história seria outra. Então, por que todos não fazem uma leitura honesta de si mesmos, ao invés de culparem as crianças que não têm hábito da leitura? Ou a gente gosta de ler ou vai passar para a criança uma idéia de literatura como chatice ou obrigação.

A Notícia – O estímulo à leitura nunca pode cair no didatismo…

Fanny – Nunca, jamais. Leitura não é didática, livro não é ensino, o que, para mim, é tão óbvio. Eventualmente escrevo livros para professores que não são didáticos, como uma antologia de textos sobre o sadismo na infância, isso porque existe o mito da “infância feliz”. Não chamei educadores para escrevê-lo, mas poetas, jornalistas, arquitetos. Para mim, pedagogia é trabalhar com o professor de uma maneira porosa, sensível, “abertante”, “perguntante”, e não com a resposta certa, etc. Por isso, cito menos Piaget e mais Paulinho da Viola, quando procuro definir educação: “As coisas estão indo, minha nêga, só que eu preciso aprender”.

A Notícia – Sem incorrer nos erros messiânico, didático ou totalizante, qual seria então a função da leitura e da leitura?

Fanny – Lê-se para ser gente, para estar alimentador por histórias nutritivas e não “ensinantes”, histórias alegres ou tristes, risonhas ou amargas, falando de qualquer assunto, de bem-aventuranças ou de “sofrências”. Para que o teu repertório seja amplo e para que encontres um caminho alegre nesse mundo de tristezura.

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Dennis Radünz
Jornalista

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Obs.
Matéria inicialmente publicada no Jornal A Notícia. Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 4º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2000)