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Este trabalho pressupõe a complexidade da mediação lingüística e cultural envolvida na produção de materiais voltados a um público infantil ou infanto-juvenil. Examina-se o caso da disciplina Produção Cultural para Crianças, oferecida entre 1992 e 2003 aos alunos do curso de graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Conclui-se que é possível e pertinente incorporar a preocupação com a qualidade dos produtos culturais oferecidos às crianças à formação dos profissionais da área de Comunicação. De um lado, isso representa um investimento na qualificação a longo prazo da relação entre os públicos e as mídias; de outro, os desafios de escrever para crianças e jovens podem enriquecer o repertório cultural e as habilidades técnicas dos estudantes, numa perspectiva pluralista e de compromisso com o direito de todos à informação e à cultura.

1.Introdução

Certa vez, no início dos anos 90, uma jornalista que havia trabalhado muitos anos na Time Magazine contou que achava seu novo emprego, em outro veículo, muito mais difícil do que o anterior. Ela escrevia agora para uma revista de notícias voltada ao público pré-adolescente, e dizia que só então percebera como era superficial o conhecimento que tinha sobre os fatos do noticiário em geral: “Eu não posso falar em socialismo, ou em guerra do Vietnã, pressupondo que os meus leitores vão entender. Eu tenho que fazê-los entender do que é que estou falando, e ainda por cima de uma forma que os interesse – o desafio é muito maior”. (1)

Este trabalho discute algumas das questões envolvidas no testemunho acima, especialmente a complexidade da mediação linguística e cultural exigida dos jornalistas e de outros profissionais de comunicação que se dispõem a produzir materiais destinados a um público infantil ou infanto-juvenil. Faremos essa discussão usando como mote o estudo de um caso, o da disciplina Produção Cultural para Crianças, ministrada pela autora deste artigo desde 1992 até 2003, como optativa, a alunos do curso de graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina. Outros temas que fazem parte dessa discussão são: a importância das contribuições de campos disciplinares vizinhos – como a psicologia, a sociologia e a teoria literária – para a reflexão fronteiriça entre educação e comunicação; e a busca de contribuir para uma dimensão crítica no ensino de graduação na área de comunicação que esteja aliada à produção experimental, e independente das imposições do mercado ainda que bem consciente delas.

A relação das crianças com as mídias é, como sabemos, tema de discussão apaixonada há muitas décadas, no mundo todo. As linhas gerais dessa discussão atualizam, a cada novo meio que surge – o rádio, as histórias em quadrinhos, a televisão, a Internet – preocupações já presentes em Platão, que advertia contra os perigos das histórias de monstros contadas pelas velhas amas aos pequenos sob seus cuidados, ou em Rousseau, que temia que os livros, com sua doutrinação enfadonha, atrofiassem os impulsos naturais das crianças que ele tanto prezava. Hoje no Brasil já é expressiva a produção teórica no campo da relação comunicação e infância, principalmente em uma linha crítica e/ou voltada à educação para as mídias. Outro dado positivo é o crescente número de projetos comunitários e de animação cultural que estimulam a utilização das mídias pelas próprias crianças. Ainda não contamos, porém, no âmbito da reflexão acadêmica, com uma sistematização suficiente das possibilidades de orientação à produção de comunicação feita por adultos para as crianças. Essa sistematização ajudaria a promover uma partilha maior dos achados temáticos e de linguagem feitos pela grande rede de grupos e indivíduos que, ao largo da grande mídia e em todo o país, produzem vídeos, livros, revistas, jornais, sites, histórias em quadrinhos, e muitos outros projetos voltados a um público infantil. O presente artigo procura dar uma contribuição nesse sentido.

No último século, são sem-conta os escritores e pensadores que se preocuparam com o que a cultura dos adultos oferece às crianças. Talvez os mais perspicazes dentre eles tenham sido aqueles que pensaram a criança do ponto de vista das lembranças da própria infância, ou seja, a partir do olhar da criança que foram um dia. É o caso de Walter Benjamin, que, ao escrever suas memórias da infância que viveu na Berlim de 1900, evidencia o quanto de criação cultural existe no olhar da criança que com ele tateia o mundo tentando atribuir-lhe sentidos. É também o caso de ficcionistas-ensaístas como Italo Calvino, Salman Rushdie e Ana Maria Machado; de pensadores como Sartre, Jung, Paulo Freire – e de tantos, tantos outros. O que esses autores revelam em suas lembranças de infância é a força da produção cultural da criança, que age a partir do que recebe pronto do mundo adulto, e o transforma.

A noção da criança como agente da cultura e como sujeito social está na base de um movimento crítico que, a partir da Convenção da ONU sobre os Direitos da Criança em 1989, vem pensando também os direitos da criança nos campos da educação e da comunicação (2). Esse movimento afirma que as crianças têm direito à Provisão (a oferta de informação e de produtos culturais diversificados e de qualidade); à Proteção ( contra produtos nocivos ao seu desenvolvimento); e à Participação (o direito de poderem também produzir cultura de modo pleno). O direito das crianças e jovens à participação na produção de comunicação, que foi por sinal uma das demandas expressas com mais veemência na IV Cúpula de Mídia para Crianças e Adolescentes realizada no ano passado no Rio, faz parte do horizonte da presente reflexão. Em primeiro plano, porém, estarão o direito à provisão – a que as crianças tenham acesso a materiais e programas de qualidade – e o apoio que a formação acadêmica dos profissionais de comunicação pode dar à qualificação da produção cultural para crianças no país.

2. A proposta inicial da disciplina Produção Cultural para Crianças 

A disciplina Produção Cultural para Crianças surgiu no Curso de Jornalismo da UFSC em 1992, como optativa. As unidades do programa eram as seguintes:

I. Entre formar e informar: reflexões sobre a produção cultural para a criança em Rousseau, Chukovski, Benjamin, Bettelheim, Eco e Postman.

II. Narrativas para crianças: do conto oral a Andersen & Carroll, Disney & Spielberg.

III. Literatura infantil brasileira de Lobato a Lygia Bojunga: história, análise de obras e reflexões teóricas. A produção contemporânea. Teatro, poesia e canção. As turmas do Pererê e da Mônica.

IV. Televisão para crianças: enlatados e “educativos”. Xuxa e Rá-tim-bum. O apaixonado debate teórico.

V. “Não-ficção” para crianças. Adequação de linguagem. O jornalismo para crianças: exame de experiências.

Como se pode perceber, o programa era extremamente amplo, como que movido por um impulso de abarcar praticamente “tudo” o que se referisse à relação entre as crianças e os textos produzidos para elas – ficção e não-ficção, impressos e audiovisuais e as múltiplas misturas de tudo isso. Esse mesmo espírito generalista e possivelmente ambicioso demais permeava os objetivos formais da disciplina: “estimular um maior conhecimento e uma melhor compreensão dos fenômenos de comunicação entre adultos e crianças”, “estimular a experimentação de linguagem em textos dirigidos às crianças”, e “sensibilizar os futuros profissionais em comunicação para as questões ligadas à infância”.

Dentre esses objetivos, o que parece melhor sintetizar a intencionalidade da proposta desde seu início é o de “sensibilizar [os alunos] (…) para as questões ligadas à infância”. Em uma época como a nossa, em que no Brasil e em muitos outros países as crianças constituem-se em um mercado importantíssimo para a venda de bens industriais – um valioso target, para usar o jargão da publicidade – nos parecia desde 1992 que era importante promover um outro tipo de atenção dos futuros jornalistas e produtores de comunicação para as questões da infância. Embora as crianças de até 12 anos representem uma grande parcela do público de televisão no Brasil, a preocupação direta com a crítica e a produção voltada a elas não costuma fazer parte do currículo das escolas de graduação em comunicação e jornalismo. Ainda prevalece em muitos contextos a idéia de que os temas ligados à infância dizem respeito apenas aos pais e aos professores de crianças. Daí talvez o caráter tão diversificado do programa inicial da disciplina: tentava-se abordar o tema por muitos ângulos diferentes, propunha-se diferentes “entradas”, buscando-se assim dar mais chances a cada aluno de perceber a pertinência do estudo da relação comunicação/infância para sua formação profissional.

Do ponto de vista metodológico, duas diretrizes se destacavam, tendo sido mantidas até hoje. A primeira era a importância do envolvimento subjetivo de cada aluno, especialmente a partir de sua própria experiência da infância. Isto, considerando que a maior parte dos alunos tinha em torno de 20 anos de idade e freqüentemente pouco ou nenhum convívio com crianças. Assim, muitas atividades em sala de aula possuíam um caráter de “laboratório de memória”. Um exercício, por exemplo, partia da ênfase dada por Walter Benjamin ao potencial evocativo das coisas que se vê pela primeira vez. (3) Sugeria-se então aos alunos que explorassem, oralmente ou em textos escritos, a lembrança da primeira vez que tinham, por exemplo, visto o mar, viajado de avião, ido ao cinema ou ao teatro. Ou, com o objetivo de valorizar a mediação adulta no processo que a criança faz de atribuir significado às coisas do mundo, propunha-se atividades a partir da primeira lembrança que os alunos guardavam de alguém lhes contando uma história, apontando uma constelação no céu, mostrando no horizonte a direção onde fica a África, explicando de onde vem a chuva ou o como se forma o arco-íris.

A outra orientação metodológica era a discussão de textos clássicos sobre a infância e para a infância. Dada a amplitude dos temas e o caráter apenas introdutório da disciplina, os conceitos teóricos provenientes de outros campos – como a psicologia, a sociologia, a pedagogia, a teoria literária – eram apresentados de forma compacta em exposições dialogadas, ancoradas em trechos dos autores que ajudassem a conhecer suas idéias mais importantes ligadas ao tema em discussão. O objetivo era estimular a curiosidade dos alunos pela cultura voltada às crianças, situando-os em um contexto teórico minimamente consistente. Dessa forma foram trabalhados temas como o conceito de infância (principalmente a partir de Ariés e Postman), o desenvolvimento cognitivo (Piaget e Vigotski), a imaginação infantil (Bachelard, Benjamin, Freud e Bettelheim) as estruturas narrativas (Aristóteles, Propp, Campbell), e os contos tradicionais e suas versões (Grimm, Von Franz, Câmara Cascudo).

Uma atenção especial foi dada à literatura infantil, por várias razões. Uma delas era a pressuposta familiaridade dos estudantes com produções nessa área, o que lhes permitiria uma reflexão mais desenvolta sobre as questões levantadas pelos estudiosos. Outra razão é a aposta em que a leitura da literatura infantil estimularia os estudantes a escrever também para crianças. O nome da disciplina, afinal, continha uma ambigüidade intencional: propúnhamos que os alunos não apenas pensassem criticamente sobre a produção para crianças, mas também que se animassem a produzir para elas. Assim, as únicas leituras integrais de livros que se propôs na disciplina foram as de dois clássicos da literatura infantil: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, e A Chave do Tamanho, de Monteiro Lobato. A discussão sobre Alice foi complementada pela leitura dos textos de Cecília Meireles (1951;1990) a respeito do clássico inglês, e nos serviu de “gancho” para a exploração do papel do humor nonsense, da brincadeira verbal e da poesia na escritura para crianças. O livro de Lobato, que surpreendeu os alunos pelo vigor na escolha e no tratamento dos temas e pela atualidade de sua linguagem (4), estimulou discussões a respeito do equilíbrio entre ficção e realismo na produção para crianças, já que o motor de sua trama é justamente a indignação da ex-boneca Emília com a II Guerra Mundial, que se desenrolava na Europa.

A discussão sobre como informar as crianças sobre as questões contemporâneas foi sempre particularmente interessante nas aulas. Afinal, os alunos eram estudantes de jornalismo, e debatíamos como combinar, de um lado, o direito das crianças à informação e os critérios jornalísticos de noticiabilidade e linguagem, e de outro, as peculiaridades cognitivas e afetivas desse público em particular. Nesse sentido, foi importante o referencial do chamado jornalismo educacional norte-americano, que se refere às revistas de atualidades semanais e mensais voltadas especificamente ao trabalho em escolas. Os dilemas enfrentados pelos jornalistas nesse contexto podem ser expressos por exemplo na seguinte reflexão de Quigley:

Como podemos pensar o jornalismo para crianças num contexto onde devemos – por um lado – evitar que elas se tornem cínicas – e, por outro, auxiliá-las a desenvolver um ceticicismo saudável? A solução parece estar no meio do caminho entre nutrir a fé da criança e estimular seu ceticismo (por exemplo, com relação aos governantes). (5)

Ou pelo editor-geral das revistas de atualidades para crianças e jovens da maior editora do ramo nos EUA:

O que nós tentamos fazer em nossas revistas é encorajar o que eu chamaria de uma verdadeira cidadania, não aquela idéia de cidadania como um bastião de agitadores automáticos de bandeiras , mas sim no sentido de uma cidadania apaixonada, de nos sentirmos envolvidos com a comunidade local, a família, a nação, o mundo. (6)

Se hoje ainda são raras as reflexões sobre o jornalismo para crianças e jovens no Brasil, anos atrás o eram ainda mais, o que ressalta a importância de um artigo escrito por Ana Arruda na década de 1970, intitulado “Jornal para Crianças ou Jornalismo Infantil”. Nesse artigo, que foi muito útil para a discussão na disciplina, a jornalista justifica a decisão do Jornal do Brasil, onde trabalhava na época, de lançar um caderno infantil:

“A criança de hoje sabe de tudo pela televisão, toma conhecimento de tudo o que se passa no mundo”. Afirmações deste tipo estão em moda. E não são totalmente falsas. O fato é que a informação nunca esteve, tecnicamente, tão ao alcance de todos. A criança, através dela, entrou no mundo dos adultos. Acabou definitivamente a velha história de “isto não é conversa para criança; saia da sala, menino.” Mas nem por isso as crianças brasileiras estão discutindo o problema árabe-israelense ou o lançamento de Letras do Tesouro Nacional no exterior, ou interessadas na estréia da peça Abelardo e Heloísa. O universo da criança se ampliou, (como também o do adulto médio), mas continua a ser diverso do dos adultos. Ela entrou em nosso mundo, mas com uma visão sua, infantil, especial. (…) Quando tem seu interesse despertado para determinado assunto, a criança se dirige aos adultos – ou melhor, ao adulto de sua confiança – para se informar sobre o tema. (…) Existe, portanto, um público infantil para jornal. Interessado na informação. Mas precisando de uma informação dirigida especialmente para ele. (Arruda, op.cit., p.33) 

De forma arguta e ainda atual, Arruda critica nesse artigo pioneiro alguns preconceitos infelizmente comuns em materiais para crianças até hoje, como o de que “criança não gosta de ler”, o que justificaria o uso exclusivo das histórias em quadrinhos como recurso de comunicação. Ela alinha os princípios que norteavam o Caderno I do Jornal do Brasil: a) uma linguagem que respeitasse o leitor (“Natural. De conversa. Sem ‘inhos’ e ‘itos’. De gente para gente”); b) o reconhecimento de “um mundo infantil” na escolha dos temas. (“Falar de primavera e de como vivem as baleias é entrar nesse mundo.(…) E sabendo que a fantasia informa tudo nesse mundo da criança, procuramos transformar, sempre que possível, cada acontecimento num pequeno conto.”(idem)); c) o apelo da cor e da beleza, na forma gráfica.

Outra referência inestimável, esta mais recente, é o estudo também pioneiro coordenado pela Agência de Notícias dos Direitos da Infância – ANDI – sobre os cadernos infantis de 36 jornais brasileiros (Canela, 2002). O trabalho critica a indefinição do público-alvo, a visão simplista da realidade social, o consumismo e a desconsideração pelo papel educacional dos jornais, característicos da maioria dos suplementos. A partir dessa análise, faz propostas bem claras, inclusive do ponto de vista da linguagem, como esta:

A linguagem deve manter grande nível de interatividade. Deve dialogar com o leitor. Exemplo positivo encontrado em um suplemento: “mas o que pode ser feito de concreto para acabar com a guerra no mundo?” O mesmo suplemento sustenta: “daqui a uns vinte, trinta anos, vocês crianças e adolescentes serão os donos desse mundo”. (idem, p.41) 

Para apoiar a pesquisa de linguagem necessária aos exercícios de redação dos alunos, além da leitura analítica de muitos textos informativos e ficcionais, em prosa e poesia, também foram estudados referenciais de certo modo mais pragmáticos, ainda que não prescritivos, de orientação sobre como escrever para crianças, como os artigos reunidos por Carr (1982) e Fitz-Randolph (1982). Além disso, trabalhamos com reflexões do próprio Monteiro Lobato – a maior influência assumida por várias gerações de autores para crianças no Brasil – e de alguns de seus comentadores, sobre os recursos de linguagem do escritor, como mostram os exemplos abaixo:

Não imaginas a minha luta para extirpar a literatura de meus livros infantis. A cada revisão nova, mato, como que mata pulgas, todas as literaturas que ainda as estragam. O último submetido a tratamento foram As Fábulas. Como achei pedante e requintado. De lá raspei quase um quilo de “literatura” e mesmo assim ficou alguma. (Monteiro Lobato, em carta a Godofredo Rangel, 1943). (Abramovich, 1982) 

Lobato escreve simples, correto, não tem medo das construções difíceis e muito menos das palavras difíceis…e isto, para mim, é sinal de respeito à criança. (Ruth Rocha, idem)

Para o estímulo à produção de roteiros de vídeo para crianças, fizemos análises de alguns roteiros de programas da TV Cultura-SP (Rá-tim-bum e O Mundo da Lua), associadas às orientações dos manuais para produtores e roteiristas da BBC inglesa. Por uma questão de viabilidade técnica e de tempo, e para não ampliar ainda mais o conteúdo programático da disciplina a ponto de inviabilizar seu cumprimento, não priorizamos a realização de análises de vídeos e filmes, nem propusemos a efetiva realização de materiais para televisão, além dos exercícios de produção de argumento e roteiro.

A cada uma das etapas descritas acima, os alunos faziam exercícios de produção textual. Na medida do possível, procurávamos associar os temas dos exercícios a assuntos da atualidade. Isso foi o que ocorreu, por exemplo, no dia seguinte à votação do impeachment do então presidente Collor, em 1992, justamente quando estudávamos as possibilidades dos textos jornalísticos para crianças: nesse dia, os alunos tiveram que escrever um texto que explicasse a uma criança o que significava afinal o impeachment. Abaixo, um exemplo:

Bruno, vou te falar o que é impeachment, tá? A gente fala ‘impítimen’, que quer dizer impedimento. Aí a gente lembra logo de futebol, né? Então pode lembrar…O jogador espertinho que só fica na banheira, leva um apitão do juiz, que diz que o gol dele não vale, né? Pois então…” (7)

Abaixo, trecho de uma reportagem sobre a reação de crianças escolares ao impeachment, escrita por outro aluno: Assim como os secundaristas, que voltaram às ruas para pedir a saída do presidente, as crianças [da escola] também demonstraram um curioso interesse. Queriam saber coisas básicas como o significado da palavra impeachment, se o presidente é ou não criminoso. Se é, por que não foi logo substituído. Questões difíceis de serem tratadas em linguagem acessível. A falta de produtos culturais específicos também foi sentida. (8)

3. A disciplina Produção Cultural para Crianças em 2003

A disciplina voltou a ser oferecida em 1993, 1998, 2001 e 2003. Sempre houve grande procura por parte dos alunos do Curso de Jornalismo, tanto que às vezes não era possível atender a todos os interessados; havia apenas 20 vagas, dado o caráter de laboratório da proposta, que demandava bastante envolvimento da professora com o trabalho de cada aluno. Para dar uma idéia do processo de crítica e amadurecimento da proposta, vamos apresentar aqui a configuração da disciplina em sua mais recente edição (no segundo semestre de 2003). Procuraremos dar ênfase às modificações que a proposta sofreu ao longo do tempo, ressaltando que as idéias de fundo e as diretrizes metodológicas permaneceram em boa parte as mesmas. Vamos começar pela ementa, que busca agora explicitar com mais clareza a proposta geral da disciplina:

Ementa:

Estudo dos fundamentos da produção cultural para crianças, voltado à criação de projetos de comunicação na área. Infância, Comunicação e Cultura. Imaginação e Interação. Contribuições de teorias da educação, literatura, psicologia, sociologia e arte. Especificidades da linguagem destinada às crianças. Narrativas para crianças: da oralidade à internet. 

Embora do programa da disciplina em 1992 não constasse formalmente uma ementa que pudesse ser comparada a esta, é fácil perceber que a referência à internet, hoje óbvia, representa um acréscimo em relação ao projeto inicial. Outro acréscimo também resultante das mudanças tecnológicas e culturais que transfiguraram o cenário das comunicações na última década é a introdução de interação entre os conceitos a serem estudados. Ressalte-se que esse conceito aparece associado ao de imaginação, deixando claro que se está procurando inserir o conceito num plano de maior complexidade filosófica, para além das visões tecnicistas ou mercadológicas tão comumente associadas a ele. Os objetivos atuais da disciplina explicitam idéias que já estavam nas entrelinhas da primeira versão do programa:

Objetivos:

1. Desenvolver a capacidade crítica e criadora dos futuros profissionais da comunicação, sensibilizando-os para as questões ligadas à infância e para o fato de que as crianças formam uma grande parcela do público em geral.

2. Desenvolver nos alunos a compreensão teórica, as habilidades técnicas e os critérios de qualidade envolvidos na crianção de projetos de comunicação destinados aos públicos infantis. As unidades programáticas ainda percorrem um amplo leque de questões, mas procurou-se aos poucos dar maior organicidade ao conjunto, além de incorporar novas ênfases decorrentes do desenvolvimento das pesquisas sobre a relação mídia-infância, que serão comentadas adiante:

Unidades:

I. O conceito de infância: aspectos sócio-culturais da construção histórica da infância. A infância na “Idade Mídia”.

II. Cognição e Imaginação. Linguagem e Interação Social.

III. Práticas culturais e consumo de mídias: a importância do contexto na definição do público. Cotidiano, linguagem e imaginário.

IV. A linguagem de não-ficção: textos informativos e especificamente jornalísticos para crianças. Formar e informar.

V. A linguagem de ficção para crianças. Experiências textuais.

VI. A linguagem audiovisual para crianças. Interrelação palavra-imagem e aspectos de roteiro. A discussão sobre a infância, na Unidade I, tem encontrado um apoio central no trabalho de Buckingham, particularmente em seu livro After the death of childhood (2000), onde o autor faz uma leitura crítica da literatura acadêmica recente na Europa e nos Estados Unidos sobre as mudanças nas mídias e na infância. Fugindo ao tom apocalíptico de obras como a de Neil Postman(1999) – que acusa as mídias de estarem causando o “desaparecimento da infância”- e também ao ufanismo de autores como Douglas Rushkoff (1999), que celebram na infância de hoje – nos países ricos e digitalmente incluídos, é claro – o que consideram o advento de “uma nova espécie”, Buckingham procura fornecer bases críticas e consistentes para “a compreensão mais realista da experiência das crianças de hoje que crescem na era das mídias eletrônicas.” (idem, p.17)

Na Unidade II, a discussão sobre cognição e imaginação tem como referência central a premissa vigotskiana de que a imaginação não se opõe ao conhecimento da realidade, ao contrário: “a imaginação é um momento totalmente necessário, inseparável, do pensamento realista”(Vigostki, [1932] 1998, p.128). As idéias do psicólogo russo contribuem também para uma concepção emancipatória do papel do afastamento da realidade que se dá na brincadeira imaginativa, inclusive aquela estimulada pela ficção literária ou midiática. Para ele, “as possibilidades de agir com liberdade que surgem na consciência do homem estão intimamente ligadas à imaginação”(idem, p.130). (9) As relações entre linguagem e interação social são fundamentadas também pela perspectiva dialógica de Bakhtin, útil para a compreensão da intertextualidade midiática através da qual hoje se dá boa parte da experiência cultural das crianças.

A referência às práticas culturais e ao consumo de mídias, na Unidade III, é uma novidade em relação ao programa inicial da disciplina. Essa ênfase procura dar conta da valorização da cultura e do cotidiano ocorrida nos estudos de comunicação brasileiros nos últimos 15 anos, em parte influenciada por obras como as de Michel de Certeau, Martín-Barbero, Néstor Canclini e Stuart Hall. Lidamos aí com a idéia de que é impossível falar da “criança” em geral, sem levar em conta a diversidade dos contextos sócio-culturais em que as crianças vivem e que são também produzidos – diferenciadamente – por elas. Está presente aí uma crítica à visão essencialista da infância, ou seja, à idéia de que exista uma essência fundamental do ser “criança” independente das relações sociais e culturais ao redor. Essa crítica nutre-se também das idéias desenvolvidas nos estudos de recepção de mídia, como a compreensão de que as atividades de assistir televisão, ouvir rádio ou ler uma revista, por exemplo, consistem em uma produção de significados, que traz as marcas das mediações culturais que a permeiam.

Os temas tratados nas Unidades IV, V e VI não apresentam diferenças importantes com relação à proposta inicial, por isso vamos nos ater aqui a dois processos fundamentais que ocorreram na disciplina ao longo dos anos. Um deles liga-se à criação do website Ateliê da Aurora (www.aurora.ufsc.com.br), onde desde 1999 são divulgados artigos, pesquisas e textos ligados à relação entre crianças e mídias. O site, dedicado aos temas “criança+mídia+imaginação” foi criado pela jornalista Laura Tuyama (10) ,em um processo de equipe do qual a disciplina faz parte. Daí em diante, o site se constituiu em uma instância paralela à disciplina, já que contém boa parte da bibliografia indicada, e disponibiliza materiais que os alunos produzem como atividades em aula.

Outro processo que foi ganhando importância ao longo dos semestres é a realização de pesquisas de recepção com crianças, como parte das atividades dos alunos da disciplina. No ano de 2000, cada aluno entrevistou duas crianças de escolas públicas e duas de escolas particulares sobre práticas culturais e consumo de mídias. Uma das questões procurava investigar aspectos do imaginário das crianças: “se você tivesse uma lâmpada maravilhosa, quais seriam os três pedidos que lhe faria?” (11) Em 2001, a disciplina se associou à I Mostra Internacional de Cinema Infantil de Florianópolis, e cada aluno entrevistou quatro crianças que tinham acabado de assistir ao filme Castelo Rá-tim-bum, numa sessão exclusiva para alunos de escolas públicas. (Verificou-se que 70% das crianças presentes, todas com mais de oito anos de idade, tinham ido ao cinema pela primeira vez naquele dia.) Em 2003, aproveitamos um encontro estadual de crianças do Movimento Sem-Terra, os Sem-terrinha, para envolver os alunos da disciplina em breve pesquisa sobre o cotidiano das crianças. Baseamo-nos em uma das perguntas que havíamos feito em pesquisas anteriores com crianças de diferentes contextos sócio-culturais (12): cada universitário perguntou a uma criança de cada vez: “o que você faz num dia normal, desde a hora em que acorda até quando vai dormir?” As respostas, tão diferentes das que crianças urbanas haviam dado à mesma pergunta, reforçaram a importância de a produção para crianças levar em conta a pluralidade cultural dos públicos. (13)

Essa ênfase na pesquisa tem várias razões. Uma delas é a importância de que o ensino seja sempre que possível associado à pesquisa, especialmente quando se trata de temas ainda insuficientemente investigados localmente, como é o caso da relação entre as crianças e as mídias no estado de Santa Catarina. Outra razão é o quanto esse contato direto dos alunos do Curso de Jornalismo com crianças de carne-e-osso os ajudou a dar consistência ao leitor implícito a quem iriam dirigir seus trabalhos. Ajudou-os, em suma, a sensibilizar-se para a existência das crianças como público e como sujeitos sociais, o que era um objetivo central da disciplina. Por fim, do somatório das pesquisas, quase sempre publicadas e com metodologias compatíveis entre si, tem sido possível traçar um panorama mais concreto de algumas relações importantes entre as mídias, as culturas e as crianças da região.

4. A produção dos alunos

Sempre foi intenso o envolvimento dos alunos com a produção para a disciplina, e temos bem claro que qualquer situação didática, mesmo uma “aula expositiva”, é sempre uma co-produção entre professor e estudantes. A disciplina em questão não teria amadurecido ao longo dos anos, não fosse o compromisso crítico e inteligente dos grupos de alunos que a cursaram. (14)

Além desse tipo de produção mais sutil, houve sempre, também, uma intensa produção textual experimental e criativa, já que a cada unidade de conteúdo corresponde um exercício de escrita. O trabalho final da disciplina é um projeto de comunicação para crianças, apresentado no último dia de aula a uma platéia de alunos de escolas públicas dos arredores. Esses trabalhos finais podem ser realizados em qualquer linguagem, desde que se liguem a um dos campos de pesquisa e produção discutidos ao longo do semestre, sendo mais frequentes os textos livres (de ficção e não-ficção), as reportagens, e os roteiros de vídeo (ficção e documentário). Muitas vezes esses textos são incorporados a um projeto mais complexo em outro suporte, como projetos de website, programas de rádio e vídeo. Já houve casos de trabalhos apresentados em formatos diferenciados, como uma sessão de slides, comentada oralmente pelo autor diante das crianças; performances teatrais a partir de textos dramáticos escritos pelos alunos; e apresentações musicais com letra e melodia compostas pelos alunos.

Para dar uma idéia melhor da produção das turmas, vamos citar apenas alguns poucos exemplos dos trabalhos finais realizados: A tua Floripa (reportagem para rádio onde crianças entrevistadas falam sobre a cidade); Cluberê (projeto de site informativo); Os carneirinhos Tip-tap-tah (dramatização de conto infantil em áudio); A turma do ferro-velho; livro-jogo onde você é o herói (livro de ficção em hipertexto “enrola-desenrola”); Tá Ligado?(jornal mural infantil para exposição em salas de espera de postos-de-saúde); Viagens de Ninar (projeto de animação gráfica musical); A próxima porta…não, a porta ao lado(radioteatro sobre a dificuldade de levantar da cama para ir à escola); O dia com poesia(livro-calendário de introdução à poesia brasileira para crianças); A história do dinheiro(audiovisual); Para que servem as barrinhas pretas? (reportagem sobre o código de barras utilizado no comércio); O travesseiro falante (radioteatro); Os direitos da criança (livro sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente); Mirrina, a bruxa solitária (roteiro de programa de televisão sobre a solidão, a busca e a compreensão). (15) Alguns exercícios de aula resultaram em Trabalhos de Conclusão de Curso, como Fazendo Arte (sítio digital sobre arte catarinense para crianças). (16)

5. Conclusões 

A análise do percurso da disciplina Produção Cultural para Crianças mostra algumas possibilidades de se incorporar a preocupação com a qualidade da relação entre as crianças e as mídias ao ensino de graduação em Comunicação e Jornalismo. A infância passa muito rápido: as crianças para quem os primeiros alunos da disciplina escreveram, em 1992, são hoje cidadãos adultos. Se queremos qualificar a relação da sociedade inteira com os meios de comunicação, não deveríamos, enquanto formadores dos profissionais do ramo, desconsiderar essa larga faixa do público, que está justamente nos anos mais decisivos para o desenvolvimento de seus processos cognitivos e para a formação de seus hábitos culturais. Os desafios de produzir para crianças e jovens, além disso, podem complementar e enriquecer as habilidades técnicas e o repertório cultural dos estudantes, numa perspectiva pluralista e de compromisso com o direito de todos à informação e à cultura.

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Notas

(1) Depoimento à autora, 1990
(2) Desse impulso fazem parte das Cartas e recomendações da Unesco sobre a Criança e as Mídias (ver Feilitzen e Carlsson, 2002) e as Conferências de Cúpula sobre Mídia para Crianças e Adolescentes
(3) Isso fica claro nas recordações de sua infância em Berlim (op.cit.), bem como em vários ensaios escritos na juventude do autor (Benjamin, 1996)
(4) Para minha lástima, nenhum dos alunos da disciplina ao longo destes anos havia lido A Chave do Tamanho, e a grande maioria deles só conhecia a obra de Lobato a partir de sua versão televisiva.
(5) Mary Quigley, professora de Jornalismos da New York e autora de ‘”Kids watch TV News – and it scares them” (Washington Journalism Review, setembro de 1989). Em depoimento à autora, 1990.
(6) David Goddy, editor da Divisão de Revistas da Editora Scholastic. Em depoimento à autora, 1990. Todos os depoimentos sobre o jornalismo educacional norte-americano aqui citados constam de Girardello (1990).
(7) Frank Maia, 1992.
(8) Marques Casara, 1992.
(9) Para uma discussão específica sobre o papel das mídias na imaginação infantil, também integrante do referencial teórico da disciplina, ver Girardello (1998;2001).
(10) A jornalista o analisou o processo de criação do site no trabalho de mestrado Ateliê da Aurora: criança, mídia e imaginação – uma proposta de metodologia para construção de uma publicação na Internet. PPGEP-UFSC, 2000.
(11) Para mais detalhes sobre esta pesquisa, ver Girardello, G: “O que eles pediriam à lâmpada maravilhosa?”. Jornal Zero Hora, Caderno “Cultura”, 18/11/2000, Porto Alegre.
(12) Girardello e Orofino (2001).
(13) Mais detalhes sobre esta pesquisa podem ser encontrados em “O dia-a-dia dos sem-terrinha: será mesmo que “criança é tudo igual”?, em www.aurora.ufsc.br
(14) E aquém agradecemos
(15) De autoria respectivamente de Robson Martins; Diogo Fontoura; Juliana Sá; Amanda Rahra; Camila Rutka e Roberta Faria; Fabiano Ávila; Ana Lacerda, Ana Paula Cardoso e Taís Shigeoka; Leo Lãs; Flávia Menani. Jéssica Souza e Maria Romani; Lúcia Passafaro; Luciany Schlikman; Juliana Sá; Marcela Campos; Beatriz Moratelli, Débora Fagundes e Júlia Becker; Yula Jorge, Nádia Hamid e Estéfano.
(16) De autoria de Mariana Cordeiro.

Bibliografia

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Gilka Girardello
Doutora em Comunicação, professora da Universidade Federal de Santa Catarina