Fotos: Andreia Machado

A Primeira Palavra é uma agradável homenagem aos livros, às palavras e às histórias

Crítica publicada no Site da Revista Crescer
Por Dib Carneiro Neto – São Paulo – 18.12.2016

Barra

Duas trupes veteranas acertam ao estrear no teatro infantil

Grupo Instante e Núcleo Bartolomeu encenam pela primeira vez para o público mirim, ambos aliando música e texto de forma criativa

Grata surpresa foi conhecer o Grupo Instante e sua estreia na modalidade de teatro para crianças, a peça A Primeira Palavra. Trata-se de uma agradável homenagem aos livros, às palavras, às histórias. Mais do que isso: o enredo é um tributo à inspiração e ao exercício da imaginação. São muito bem sacadas as imagens propostas no texto, não raro alcançando o status de poesia encenada. Uma traça, por exemplo, ‘frequenta’ os livros de uma biblioteca para sempre comer a primeira palavra: Era, da expressão “Era uma vez”. Assim todas as histórias começam por “Uma vez…”. Delicioso o exercício proposto de imaginar uma cidade habitada por todos os personagens brotados da imaginação fértil dos escritores, mesmo os personagens que não ‘vingaram’, que acabaram ficando de fora dos livros. Lances desse tipo fazem do texto um primor de criatividade e convite à leitura.

A autora, Maria Cláudia Mesquita, está em cena o tempo todo, responsável pela música ao vivo, que foi composta também por ela. É muito bem feita a integração da música com o texto (direção musical de Daniel Maia), de forma, às vezes, totalmente ‘casada’, forçando as três atrizes (Ana Carolina Godoy, Indy Tavares e Renata Maia, ótimo trio) a dizer suas falas com ritmo e cadência, ou seja, boa parte das falas foi previamente harmonizada com o violão ao vivo. A direção de Dayane Porto é correta e ágil, explorando com boas marcações a colorida cenografia de Lu Grecco, feita de livros, livros e mais livros empilhados no palco. A julgar por essa estreia, o Grupo Instante terá muito brilho pela frente. O sólido trabalho inicial anuncia uma carreira com potencial para ser duradoura. Para muito além do mero ‘instante’ que carrega no nome.

Outra primeira incursão no teatro infantil se deu neste fim de ano com a companhia Núcleo Bartolomeu de Depoimentos. E a peça inaugural é também muito boa. O nome é 1, 2, 3… Quando Acaba Começa Tudo Outra Vez. O tema: a morte. Ou seja, o grupo faz sua entrada arrombando a porta da frente do teatro para crianças, defendendo um tema que ainda hoje é considerado tabu. O palco é uma festa, com um elenco numeroso, banda ao vivo, projeções em telão e uma cenografia de encher os olhos (por Bianca Turner). A menina Joana perde o avô, mas a mãe não consegue contar à filha, que fica triste e deprimida em seu quarto. Dói em cada um de nós quando ela pergunta: “Como assim ele não vem mais? Nunca mais vou ver o meu avô? Mas para onde ele foi?”

A sensível dramaturgia e a direção ficaram a cargo de Claudia Schapira, que optou por colocar duas Joanas o tempo todo em cena. Na verdade, são três: a terceira é a intérprete de libras, Amanda Lioli. E eis uma questão a se pensar: a atriz que faz toda a linguagem de sinais para os deficientes auditivos da plateia mistura-se o tempo todo à encenação, nem sempre de forma harmoniosa. Ao contrário, resultando às vezes em confusão para a compreensão e a fluência da fábula, a meu ver. Pois como há muitas falas em off na peça, parece que essas falas surgem dessa terceira Joana, que, na verdade, está ali só para as libras. Acho interessante quando essas intérpretes participam ativamente da peça ao lado do elenco, mas há casos em que sua presença interfere demais. Saí pensando nisso: será que aqui não seria melhor ter deixado a intérprete mais afastada em um canto?

De toda forma, como ou sem intérprete de libras (um inegável ganho recente do teatro, admite-se), o espetáculo não serve para crianças muito pequenas. Ele é feito de muitas imagens, alegorias, simbologias, metáforas, canções em que muitas vezes (por questão de qualidade da microfonia) não se compreende totalmente a letra na íntegra. Isso faz os menores perderem o foco. Mas, para crianças alfabetizadas, funciona melhor. A esperta direção musical de Roberta Estrela D’Alva e Eugênio Lima faz andarem de mãos dadas a palavra falada e a cantada, além de explorarem vários ritmos e gêneros musicais – o que faz a peça ter esse atrativo extra de iniciação ao mundo da música, que pode e deve ser explorado em casa pelos pais ou na escola pelos professores. A escolha por duas Joanas em cena o tempo todo justifica-se somente no final da peça, quando uma das Joanas ainda se recusa a sair do quarto e a outra já está mais conformada com a perda e querendo voltar para a vida. Essa puxa a outra, representando explicitamente para a plateia a dualidade contida na mesma personagem, isto é, mostrando como certas situações realmente nos dividem.

Há lances bem bonitos, poéticos, e também não faltam trechos de bastante humor e diversão. No frigir dos ovos, é uma peça corajosa, ousada, bem interpretada por oito atores-cantores (Ana Antunes, Carolina Nagayoshi, Felipe Gomes Moreira, Luiza Romão, Nilceia Vicente, Rafael Faustino, Thiago Freitas e Túlio Crepaldi). Um tema paralelo e complementar ao da morte é também muito bem explorado: o medo ou, mais do que isso, o medo de ter medo. A solução final, mais poética do que surpreendente, é dizer à menina Joana que o seu avô virou passarinho e agora precisa voar por aí. É tocante e belo, sobretudo delicado, pois, de fato, falar de morte para crianças exige esse cuidado. Mas fiquei pensando: sugerir que quando morremos viramos passarinhos não é o equivalente a acreditar que nascemos trazidos do ar pelo bico de uma cegonha? Quero dizer com isso que uma peça com essa proposta de tocar na dificuldade da mãe em falar diretamente à filha que seu avô morreu talvez merecesse um final menos fantasioso e mais real, mais direto. São questões a se pensar, mas que não tiram o brilho de um espetáculo bem feito e que merece ser visto.

Serviços

A Primeira Palavra

Funarte São Paulo – Sala Carlos Miranda
Al. Nothmann, 1058 – Campos Elíseos, São Paulo
Tel. (11) 3662-5177
Sábados e domingos, às 16h.
Ingressos a R$ 10,00 (inteira) e R$ 5,00 (meia). Só até domingo (20)

1, 2, 3… Quando Acaba Começa Tudo Outra Vez

SESC Pompeia. Rua Clélia, 93
Tel. (11) 3871-7700
Sábados e domingos, às 11h
Ingressos: R$ 5,00 (credencial plena/trabalhador no comércio e serviços matriculado no Sesc e dependentes), R$ 8,50 (+60 anos, estudantes e professores da rede pública de ensino) e R$ 17,00 (inteira)
Gratuito para crianças de até 12 anos. Só até domingo (20)