Paulo Martins Fontes. Foto: Antonio Carlos Bernardes

Primeiras lembranças do Teatro para Crianças

Minhas primeiras lembranças aconteceram na Biblioteca Monteiro Lobato, que era um lugar bem conhecido, localizado no bairro de Nazaré, em Salvador. Existia um lugar chamado Espaço de Criatividade Infantil, uma sala onde três vezes por semana eram realizadas atividades de pintura para crianças de rua, de uma comunidade próxima. Tinha material para desenhar, pintar e duas vezes ao mês tinha apresentações de teatro de bonecos. Não me recordo quem eram esses bonequeiros, mas a estrutura da biblioteca era muito precária. Tinha um auditório e alguns grupos de teatro, recém-saídos da universidade, que se formavam através de oficinas com diretores de teatro de Salvador, usavam o espaço da Biblioteca para experimentar suas ideias e trabalhos. Foi lá que eu comecei minhas atividades com teatro. Eu entrei criança dentro deste universo e aos poucos fui me desenvolvendo.

Na época que eu era espectador, tinha uns oito anos. Fui aluno do Colégio Salesiano, que ficava em uma praça principal no bairro de Nazaré. Eu estudava pela manhã e a tarde ia para a Biblioteca. Era o único lazer destas crianças durante a semana inteira. Às vezes, até aos sábados pela manhã faziam atividades. Enfim, foi o local que me despertou para essa linguagem. É bem verdade que sou da época do programa Vila Sésamo, que me dava grande curiosidade.

Depois saí daquele bairro e fui morar em outra região de Salvador. Dez anos depois, voltei novamente para Nazaré para fazer atividades de teatro de bonecos, porém ainda de uma forma amadora. Eu devia ter uns dezessete ou dezoito anos.

Comecei a criar bonecos, de forma muito precária, sem técnica. Até porque em Salvador o conhecimento desta linguagem é um pouco limitado. Lá se faz muito pouco teatro de bonecos. Das companhias que têm um trabalho de pesquisa respeitado e continuado, podemos citar umas quatro ou cinco, e mesmo assim fica um distanciamento muito grande do que está acontecendo no resto do país. Dentre esses grupos posso citar A Roda, que é dirigido pela Olga Gomes, uma argentina que foi morar lá e Denise de Santos e Ismine do Teatro Lambe-Lambe.

Trabalho em São Paulo e o Retorno a Salvador

Eu saí de Salvador em 1989 e fui morar em São Paulo. Fui estagiar em publicidade, na área de desenho, que era algo que eu me apaixonava muito. Meu pai foi artista gráfico e ilustrador, o que me estimulava muito a trabalhar com esta linguagem. Ele foi um pai que sentava no chão e recortava papel com o filho. Ele tinha um traço fantástico e trabalhou muito tempo num estúdio de produção de revistas em quadrinhos que fazia a finalização das revistas de revistas em quadrinho. Ele trabalhou muito tempo com isso. Há pouco nós nos reencontramos e ele manifestou uma felicidade muito grande por estar se realizando como artista através do filho.

Além do estágio, trabalhei também com animação em festas de aniversário para crianças. Eu usava uns quadros com bonecos que fazia com luva. Em São Paulo, eu aprendi muito com pessoas que tinham experiência de circo. Cheguei a conhecer um artista que trabalhava como palhaço e que começou a me orientar para esta questão do uso de bonecos.

Quando retornei para Salvador, em 1991, tive oportunidade de desenvolver uma oficina com Lorran Pelayo, diretor francês de Comédia dell’Arte, cuja companhia trabalha na Itália que estava em temporada no Teatro Castro Alves. Ele realizou uma oficina para atores, bailarinos e marionetistas. Essa foi minha primeira experiência em relação técnica: como se deslocar no palco, os princípios básicos etc. Além de ter consciência de entrar no palco, você tem que ter tônus muscular diferente, ter uma energia diferente do cotidiano.

Também 1991, firmei uma amizade muito grande com a bonequeira Denise de Santos que era do Teatro do Lambe-Lambe. Um dia, ela assistiu o meu trabalho apresentando na Biblioteca Monteiro Lobato. Essa foi minha primeira experiência profissional. Um pouco antes o auditório da Monteiro Lobato tinha passado por uma grande reforma e colocaram uma iluminação de porte profissional.

O nome do espetáculo era Para Gregos e Baianos e abordava um assunto que estava muito em voga que era a questão das pessoas que estavam sendo desalojadas no Pelourinho, que era uma zona de baixo meretrício. Isso tomou conta da classe teatral, dos artistas e de outras pessoas que ficaram mobilizadas, porque esses moradores estavam sendo despejados para que os espaços virassem locação de lojas.

O Caminho para o Teatro de Bonecos

Eu nunca cheguei a fazer nenhum curso de dramaturgia, só oficinas. O ano de 1991 para mim é considerado um marco. Foi quando eu conheci o Sandro e o Gal e acabei montando um grupo. Éramos três a manipular mais um técnico que operava luz e som. Trabalhamos juntos por uns quatro anos.

Quando a Denise me assistiu na Monteiro Lobato, eu ainda trabalhava como publicitário na Propeg, uma agência de publicidade de Salvador. Depois de ver meu trabalho, ela me deu um grande incentivo para seguir com teatro de bonecos.

Apesar de eu ainda ter muita coisa a aprender, eu me entregava no que fazia e acredito que isso é fundamental. Ela me indicou o Festival de Bonecos de Canelas, no Rio Grande do Sul, um dos maiores da América Latina, onde produções do mundo inteiro se apresentam. Ela me passou o contato do Antonio Carlos Senna, da Associação Gaúcha de Teatro de Bonecos que junto com a prefeitura, eram promotoras do evento. Eu resolvi encarar a história e vim sozinho para o Sul em 1995 para participar do festival.

Nessa edição tinha umas trinta companhias de teatro de bonecos gaúchas, mais umas vinte de todo o país e mais umas tantas internacionais. Tinha muita atração de rua. Produções instigantes demais! Com técnicas que eu nunca tinha visto. Tinha uma dupla alemã de teatro negro que fazia umas figuras no ar com tule, montando figuras dando nó no tecido.

Estavam presentes outras companhias como XPTO do Osvaldo Gabrieli, de São Paulo, com o espetáculo Coquetel Clown, além de grupos da Argentina, Rússia, Holanda, França. O mais interessante era que as companhias do Sul eram estimuladas pelo festival e pela Associação Gaúcha de Teatro de Bonecos – AGTB. A produção da AGTB colocava seus associados para trabalhar na estrutura do festival, fazendo coordenação de palco, produção de rua, para trabalhar na função de acompanhante, que hoje em dia se chama “anjo”. Foi uma excelente oportunidade de conversar com grupos de outros países e realizar esse intercâmbio de experiências.

As companhias estrangeiras chegavam com materiais e tecnologia de ponta. Foi nesse festival que pela primeira vez eu vi um som quadrifônico. A variedade de bonecos era enorme: tinha bonecos gigantes, marionetes com arpão, bonecos de vara e até bonecos autômatos controlados por rádio controle. Eu voltei de lá enlouquecido. Outro estímulo importantíssimo para mim foi conhecer em Salvador o trabalho da Companhia Truks, de São Paulo. Foi a primeira vez que eu vi uma encenação com bonecos de balcão. Voltei para Salvador, pedi demissão da agência e vim morar no sul.

A Nova Vida em Porto Alegre

Cheguei em Porto Alegre em 1995, mais ou menos um mês depois da experiência do Festival. Fui logo convidado pela bonequeira Andréa Castro a trabalhar. Na época ela estava estudando Artes Plásticas, e teve várias oficinas com o pessoal do Giramundo Teatro de Bonecos. Ela é uma pessoa extremamente cuidadosa nas construções das marionetes e dos bonecos. Eu me espelhei muito nela e fui construindo algumas coisas. Logo fiz uma parceria com o grupo locais trabalhando na construção do espetáculo Histórias da Carochinha. Posteriormente a Andréa Castro veio a ser minha orientadora no processo de construção e na troca de informações de referenciais plásticos e de concepção.

Gente Falante

Com o tempo eu fui me estruturando e comecei a desenvolver o trabalho que eu realizava em Salvador e formei o Grupo Gente Falante. Esse nome veio de um boneco que falava demais em um dos meus espetáculos. Mesmo quando o ator interagia com as crianças, ele não as deixava falar. Algumas crianças chegavam até a ficar irritadas com a apresentação, mas sempre pediam para voltar. No fundo, essa história de um boneco falastrão não era uma coisa muito boa. Hoje em dia estamos caminhando para outro tipo de produção que é a obra mímica de teatro de bonecos que iniciou quando conheci a obra do mestre Guairá Castilla e através pesquisa para o nascimento do projeto Circo Minimal.

Mas antes disso, fiz durante muito tempo intervenções em espaços culturais, como na Casa de Artes Baca, que era um local de oficinas de dança e música. Circulei por vários bairros da periferia de Porto Alegre e isso me encantava porque existia um movimento cultural muito grande. Na ocasião a Prefeitura tinha vários projetos para fazer circular as produções.

Por ocasião de uma ida a Buenos Aires, conheci Pablo Medina e ele me apresentou um acervo fantástico de dramaturgia para teatro de bonecos. Na ocasião conheci Horácio Tianelli, as obras do Guara Castilla (Gabriel Castilha) e a obra do César Lopes Ocom. Quando voltei, fui trabalhar num Centro Cultural que tinha a gestão do PT e que depois viraria nossa sede.

As Produções Realizadas no Sul

O primeiro espetáculo que montei com intervenções chamava-se Quatro Contos Para Teatro de Bonecos, que teve estreia em 98. Apresentamos a peça em Shoppings, praças e na Feira da Cidade Antiga, que era uma feira realizada próximo à Usina do Gasômetro com comidas típicas do Sul, da Argentina e do Uruguai.

Meu espetáculo seguinte surgiu num momento em que a técnica de contação de histórias começou um movimento incrível. Tanto na Casa de Cultura Mário Quintana, quanto na Biblioteca Lucília Minssen diversos contadores de histórias, tanto do Rio Grande do Sul como de outros estados do país estavam fazendo apresentações. Cheguei até a assistir uma peça de um grupo do Rio de Janeiro que contava uma história da Maria Clara Machado com o uso de bonecos. Fui vendo então que esse tipo de linguagem era muito rico e ao mesmo tempo, um instrumento de incentivo à leitura. E nesse período montei o Teatro de Sombra de Ofélia.

A Arte Imita a Vida

O teatro de bonecos era minha única atividade profissional. Volta e meia eu também fazia algum projeto gráfico para as companhias de teatro daqui ou ilustração de livros infantis. Conhecer o pessoal do Grupo Cuidado que Mancha foi muito o importante para nossa trajetória, tanto que eles passaram a criar nossas trilhas sonoras e a gente sempre os convidava para assistir nossos espetáculos para comentarem conosco suas críticas. E essa parceria resultou em trocas: os bonecos do Gente Falante entravam nos espetáculos do Cuidado que Mancha e vice-versa, e a musicalidade deles foi essencial para nossas produções. Na época, o grupo deles era composto por Jackson Zambelli, Gustavo Finkler, Cristiano Hansen e a Rachel Grabauska, que era a diretora. Era ela quem fazia a composição de cena e dos shows musicais.

Essa fase foi maravilhosa, apesar de passarmos por dificuldades financeiras. Por causa desse problema, eu comecei a olhar com mais atenção para as pessoas que moravam na rua. Teve um dia que eu estava louco de fome e eu fui visitar uma família com crianças que morava embaixo da ponte e eles me convidaram para tomar uma sopa com eles. Toda essa experiência me serviu de aprendizado e conteúdo para o meu espetáculo seguinte que foi o Sob a Luz da Lua. Era um espetáculo com uma temática mais adulta onde um dos personagens era um morador de rua e que foi muito assistido pelo público jovem.

O espetáculo foi realizado numa época em que os índices de violência estavam altos, como foi o caso daqueles jovens de classe alta que queimaram o índio Galdino. O sucesso do Sob a Luz da Lua abriu novas portas e deu uma grande visibilidade para nosso trabalho. Essa difícil fase ocorreu por volta de 1999. E nessa onda de sucesso surgiu o espetáculo infantil João e Maria, que montamos em 2000, antes de comemorarmos dez anos de trabalho. O texto, que eu escrevi junto com a Patrícia Preiss, era sobre abandono infantil.

A Influência do Circo Itinerante

No mesmo ano eu também comecei a me interessar pela linguagem de circo e conheci o trabalho do Circo Teatro de Periferia de apresentações itinerantes por locais de baixa renda. Acabei me apaixonando por essa ideia de levar cultura e arte pelo interior e procurei formatar isso para a arte de bonecos. Aos poucos fui pesquisando e em 2003 cheguei à ideia da montagem do Circo Minimal.

O primeiro quadro que fizemos foi Vá Dançar nas Profundezas e durante a temporada que o FUMPROARTE financiou, nós estreamos os outros nove, mas desde o começo eu tinha em mente dez quadros. Tinha que ser um circo e mínimo, com repertório de dez histórias. Nós apresentamos em diversos parques de Porto Alegre, desde o Parque Moinho de Vento que fica na zona mais nobre da cidade até o mais popular que é o Parque Harmonia, onde os gaúchos fazem churrasco no final de semana. Hoje o Circo Minimal é formado de seis quadros rotativos. Trocamos às vezes com algum para remodelar ou restaurar algum boneco que tenha desgastado ou quebrado em alguma apresentação.

O Circo Minimal é fruto de uma experiência que a gente passou aqui em Porto Alegre ao longo destes anos em relação à falta de recursos por parte da Prefeitura. Como eles não tinham a estrutura de produção para que as companhias se apresentassem isso fez com que adaptássemos o Circo Minimal aos equipamentos da prefeitura e do projeto de descentralização. A estrutura do Circo Minimal facilita nossa adaptação e liberdade para os mais diferentes locais. A única coisa que precisamos é o uso de tomadas, ou de um mini gerador.

Contato Intimista com o Público

Eu nunca pensei em fazer o Circo Minimal num formato de grande espetáculo, porque a ideia é justamente fazer o público experimentar um contato mais íntimo com a arte. Com esse trabalho, nós presenciamos a reação do público tête-à-tête, coisa que nunca conseguiríamos se o espetáculo fosse apresentado para trezentas pessoas. Com 300 pessoas, você não faz nem ideia de como está se comportando o público da última fileira. Já no Minimal, as sete pessoas não tem como fugir, elas estão ali, na minha frente. Foi o contato mais orgânico e espontâneo que eu já tive. E é muito positivo quando você sente o encantamento das pessoas, que embevecidas, se aproximam e estendem a mão para tocar nos bonecos e você percebe que elas se envolveram com aquele ambiente mágico que se cria.

Ao mesmo tempo, tem também aquelas crianças que não gostam ou não queriam estar ali, pois foram obrigadas pela mãe para assistir à peça, que também reagem tão espontaneamente quanto as que gostam. Teve uma vez que um menino reclamou que não queria ver a peça, arrancou o boneco da minha mão e quebrou minha cenografia. Foi uma experiência muito maluca. O contato muito próximo nos leva ao máximo da improvisação. Nessa ocasião eu não sabia nem o que fazer, porque se ele tivesse mais próximo, ele poderia até ter me batido.

Sempre entram poucas pessoas de cada vez. Geralmente são grupinhos de amigos ou familiares que já têm uma afinidade, e isso cria quase uma relação afetiva com o espetáculo. É como se naquele momento, eu mostrasse tudo que tenho de bom, só para eles.

Esse tipo de experiência nos inspirou a continuar esse trabalho com obras mímicas. Então comecei a bolar quadros a partir da dramaturgia do Guaíra, que é um mestre bonequeiro e solista. Ele tem uma poesia com humor cáustico e ao mesmo tempo muito sutil: desde a descrição que ele faz da marionete, que quase se desfaz na mão do manipulador. É algo tão sutil que quase se dissolve. As obras dele são lindas, e encantam as crianças e os adultos. Ele tem uma coisa que é essencial que é abarcar ambos os públicos, e é esse o objetivo que também procuramos com nosso trabalho.

O Circo Minimal tem os seguintes quadros: Vai Dançar nas ProfundezasA Galina Galinova, a Soprano; Amendoim, o Menor Cão Amestrado do MundoOs Palhaços; Pinguim Mágico O Santuário, auto de natal feito com pássaros, com teatro negro e figuras planas, que a gente faz sempre na época de dezembro. Nós nos instalamos em algum lugar transformamos o Circo Minimal, com uma cara natalina, e as pessoas entram para assistir um quadro que tem animais amestrados e que remete a imagem da Sagrada Família, com desenhos e signos do de natal.

A Exposição de Bonecos do Gente Falante

Em Junho de 2007 comemoramos 16 anos de atividades e o SESC de Ribeirão Preto, durante a mostra de bonecos que eles realizam anualmente, fizeram uma homenagem muito bonita para nós. Aproveitamos a oportunidade para levar a exposição “Anima em Festa”, com os bonecos da nossa companhia. Nós já tínhamos apresentado parte dessa exposição no Festival de Blumenau, mas só em Ribeirão Preto apresentamos completa.

Foi maravilhoso o tratamento que eles deram aos bonecos, a luz da sala de exposição ficou linda. Apresentamos um repertório: Os Quatro ContosSob a Luz da LuaO Teatro de Sombra de Ofélia e os quadros do Circo Minimal, além do boneco gigante, que também participavam da exposição.

Essa homenagem nos deixou bastante empolgados e quando chegamos a Porto Alegre as homenagens continuaram. Fizemos o Circuito da Caixa Cultural e do SESI Bonecos, este na região amazônica. Também nos apresentamos em Salvador, Fortaleza, Pernambuco, Brasília e várias cidades do interior de São Paulo. Com o Circo Minimal nos apresentamos no interior do Rio Grande do Sul.

No último festival que participamos, uma palestrante nos disse que devíamos mudar o nome para “Gente Muda”. Que nosso grupo deveria procurar um olhar para uma linguagem tão universal, que poderia abarcar todos, a família inteira, rompendo a barreira da língua portuguesa, se abrindo para outros países, e poder transitar por aí. Acho que vamos acabar nos especializando na obra mímica.

O Grupo Atual

O Eduardo Custódio veio trabalhar comigo há dez anos. Ele também não tem formação em teatro. Aliás, nossa formação é muito engraçada. Eu sou Administrador de Empresas. Comecei a fazer Desenho Industrial na UNEB, em Salvador, mas parei no meio. O Eduardo é formado Técnico em agropecuária. Trabalhava numa escola universitária, em que a especialização era em técnicas agrícolas. Mas ao teve ao longo desta formação algumas experiências em teatro e participou de um grupo em Pelotas. Acabou conhecendo o teatro de bonecos e se apaixonou. A Nil Gomes está com a gente faz pouco tempo e foi minha aluna numa oficina do projeto Usina das Artes. Também se apaixonou e começou a trabalhar tão bem que a convidamos para fazer parte do grupo. Temos a intenção de trazer outros, mas por enquanto somos um trio. Temos também uma amiga, a atriz Liane Venturella, que é nossa diretora de cena. É a pessoa que tem um olhar de fora e que nos dá dicas necessárias.

Eu faço a construção dos bonecos e a cenografia também, mas para o espetáculo novo, estamos trazendo a Zoé Degani que é artista plástica e que trabalha com estruturas móveis. Ela tem uma especialização fantástica em estruturas metálicas manipuláveis que se metamorfoseiam.

O Projeto da Usina

Nós chegamos à Usina em 2005. O Caco Coelho, se baseou num projeto da Fundição Progresso, no Rio de Janeiro. Ele tinha participado de todo o processo de gestação e de implantação da Fundição e quando começou a ideia de implantação de um projeto com esse formato, o Ricardo o iniciou no Centro Cultural do Solar da Câmara. Consistia em apresentações de espetáculos dentro do espaço de museu, o que revitalizou aquele espaço, que tinha uma frequência muito pequena de público. Ele levou vários grupos de teatro e começou a criar uma ideia que mais adiante resultou no Usina das Artes quando foi convidado a ser diretor da Usina.

Numa visita a Alemanha, Caco (Ricardo Coelho) conheceu um espaço que era administrado por uma companhia de teatro, com subvenção governamental. Ele se apaixonou pela ideia de ocupação de espaços públicos por companhias de teatros e acreditou piamente que isso seria essencial para gerar uma maturidade nos grupos. O fato de você poder ter seu espaço com uma agenda que você estabelece, com a possibilidade de fazer uma amostragem do repertório do grupo e de experimentar coisas livremente, é excepcional.

A Usina tem vários espaços e cada um deles é ocupado por diversos grupos. A escolha dos parceiros foi realizada por afinidades, pois as linguagens não podem se confrontar. A Elisa Pierim, que divide o espaço com a gente, faz o trabalho de dança indiana. Nós estamos estreitando as duas linguagens, criando experimentos muito interessantes entre bonecos e dança indiana, utilizando o gestual, da dança clássica indiana na forma animada. Essa experiência é fantástica e isso só fortalece qualquer linguagem. Faz com que a gente repense a forma como está conduzindo e tire proveito de processos que outras linguagens utilizam para você maturar o teu processo de trabalho. Este estreitamento com outras linguagens foi essencial para amadurecer o nosso trabalho.

Além disso, ter um espaço significa que podemos trazer convidados de outros estados para apresentar espetáculos, troca de ideias e de experiências. Isso só nos enriquece.

Buscando suas Origens

No ano de 2006 nós fomos contemplados com o Projeto da FUNARTE que foi a forma de realizar outro grande sonho que eu tinha. Esse projeto foi fruto da experiência que a gente teve ao longo destes anos todos. Começamos a perceber que estávamos esquecendo que a origem do “Gente Falante” vinha de Salvador, da Bahia.

Desde minhas primeiras apresentações eu trabalhei com um boneco chamado Von Brown, que era na verdade, meu alter-ego. Percebi que estava deixando uma riqueza muito grande para trás, e que eu podia resgatar. Comecei a me lembrar de histórias da minha infância, dos locais. Comecei a fazer um apanhado da minha origem, da minha família. Dos avós paternos, minha avó era inglesa casada com um negro, descendente de africano. Enquanto que minha avó era ruiva e sardenta. Os pais da minha mãe era um português que casou com uma filha de índios. Logo eu sou uma mistura totalmente brasileira, então resolvi contar um pouco dessa mistura.

Comecei a escrever o que seria o projeto, a partir das coisas que havia realizado na época que eu morei na Bahia. Uma vez, eu fiz uma visita numa vila de pescadores que estava muito degradada, numa área do litoral norte de Salvador. Um artista que mudou para a região começou a fazer umas interações com a vila de pescadores para recuperar o local. Os navios que passavam por lá derramavam muito lixo que ia parar na praia. Começamos então a pegar o lixo e transformar em adereço. Montamos um espetáculo que foi a base da história que eu vamos fazer hoje neste novo projeto.

Chama-se Xirê das Águas, um espetáculo que fala das sereias brasileiras. Na verdade é um misto da sereia greco-romana que se misturou com os orixás, que vieram com os escravos africanos. Pensamos dar outra roupagem e outra estética que vamos pesquisar,. Uma mistura deste mito com a cultura indígena, que deu origem a Yara, que acabou virando a Oxum, que é a sereia da água doce.

Xirê das Águas é a ideia de um espaço imaginário. Um espaço de culto onde as duas deusas das águas se encontram, mãe e filha. A sereia da água doce e a da salgada. Como se fosse um rio que desemboca no mar, e ali as duas se encontram para conversar, para trocar ideias sobre suas vidas e para falarem sobre a relação delas com os humanos.

Para Todos os Públicos

Teatro de bonecos, não tem um público particular, porque na maioria das vezes serve tanto para adultos como para crianças.

Trabalhei mais para crianças, uma vez que meu ambiente de formação foi a Monteiro Lobato. Eu tive uma grande convivência com essa realidade do lúdico, do boneco feito para criança, feito por uma professora, pedagoga. Inclusive, durante muito tempo eu pensei o teatro de bonecos era apenas para o público infantil. Depois que estudei o teatro de bonecos de forma mais ampla, que comecei a descobrir as técnicas, fui vendo que o teatro de bonecos tem muito mais a ver com o público adulto. Ele mexe muito mais com os signos que a gente tem, que são da nossa formação de personalidade, que vem desde a infância, que desperta a criança que está adormecida e recupera a possibilidade da gente de sonhar.

Resumindo, eu via muito mais meus espetáculos para o público infantil, mas hoje em dia eu tenho uma predileção para o público adulto, apesar de eu achar que o espetáculo tem que ser, construído para as duas categorias. Não deve se separar as duas coisas. O espetáculo tem que ser universal neste aspecto. Tem que envolver a família inteira, para que todos compartilhem dessa experiência. Mas como já disse, tenho uma predileção hoje em dia para o público adulto, apesar de gostar muito de trabalhar com o público infantil.

Uma Paixão

Vou te confessar uma coisa: no início, eu tinha um medo absoluto dos bonecos. Foi aos seis anos que eu vi pela primeira vez, um boneco sendo manipulado, e aquilo me causou um terror absurdo. Eu ficava imaginando como é que uma coisa que não tem uma forma humana podia se movimentar assim tão perfeitamente. Eu não conseguia identificar o boneco nem como brinquedo nem como figura humana. Eu me perguntava o que era aquilo. Como é que uma coisa dessas podia estar transitando pela rua. E se eu encontrasse, um dia, com algum? Essas ideias passavam pela minha cabeça quando criança.

Depois, foi me gerando uma curiosidade, foi me instigando para saber o que estava por trás daquilo. Quando eu descobri que existia uma pessoa manipulando aquilo, o entusiasmo foi tomando conta da minha vida. Hoje em dia não me vejo mais fazendo outra coisa. É minha paixão absoluta. Vivo o teatro de bonecos, vinte e quatro horas. Quando não tenho tempo de ver teatro de bonecos, estou vendo um filme de cinema de animação, ou estou construindo alguma coisa, ou estou movimentando as minhas mãos, ou estou associando o movimento de uma pessoa que eu vejo na rua, a uma possibilidade de um boneco em uma cena que eu venha a construir. Presto atenção em tudo, até um raio de sol que bata em uma árvore, eu já imagino a luz que eu possa construir a estrutura cenográfica, para deixar o espetáculo mais instigante.

Eu vivo isso vinte e quatro horas. E se isso fosse tirado de mim agora, seria desesperador. Não sei fazer nada além disso e acredito mesmo ao longo dos anos fui aprendendo com as pessoas que me orientaram que quanto mais conhecimento nos é dado, mais responsabilidade a gente tem. Essa responsabilidade é no âmbito da criação micro e macro. Eu acredito piamente que quando você cria alguma coisa na cena, quando você constrói um boneco, você tem domínio daquele material plenamente, que você tem que experimentar até a exaustão e aí você compreende o que você criou e leva para cena aquela figura. Ela se experimenta com o público, com o ambiente, com o cenário e então começa a ter pleno domínio daquilo. Começa a ser uma figura viva.

Tem personagens que eu fiz, e manipulo que desdobram independente da minha, psique. Eu creio que essa é a relação que os místicos fazem, com o Deus absoluto que nos criou, que elegeu o melhor material para que a gente fosse o mais expressivo possível, que interagisse com o ambiente que nos foi criado.

Eu acredito que isso acontece de uma forma intensa no teatro de bonecos. Criamos figuras pequeninas, que inicialmente dão os primeiros passos a partir do conhecimento que você empresta para elas. Você empresta as possibilidades para ela que você sabe que o seu corpo tem. É como se você fosse um Deus menor, emprestando para as criaturas todas as possibilidades para que elas se reconheçam e em algum momento elas olhem para baixo, ou para cima e digam: “Ué, você esta aí?” Eles vão reconhecer o próprio criador.

Da Cia. Gente Falante

2011 – Xirê das Águas – Orayeyê Ôh, espetáculo para sala dirigido a toda a família
2010 – Louça Cinderella, espetáculo de teatro de objetos para salas e espaços alternativos
2008 – Xirê das Águas – Odoyá, espetáculo para sala dirigido a jovens e adultos
2003 – Circo Minimal, para todas as idades, ganhador do Tibicuera Especial
2001 – João e Maria, espetáculo para sala dirigido a toda a família
2001 – Sidério Irmão do Espaço, performance de rua com boneco gigante
2000 – Sob a Luz da Lua, espetáculo para sala dirigido a jovens e adultos
1999 – O Teatro de Sombras de Ofélia, contação de histórias, Prêmio Quero-quero SATED – Assembleia Legislativa de melhor espetáculo de bonecos em 2006
1998 – 4 Contos para Teatro de Bonecos, espetáculo para rua e espaços alternativos
1995 – Livro! A Grande Aventura
1994 – A Menina e a Árvore
1993 – Para Gregos de Baianos
1991 – Essa Gente Falante

Em Outros Espetáculos

1995 – Histórias da Carochinha, direção Andréa Castro

2003 – Prêmio Tibicuera / RS, para Circo Minimal
2006 – Prêmio Quero-Quero SATED/RS para O Teatro de Sombras de Ofélia
2006 – Prêmio Caixa Cultural de Circulação para Circo Minimal

Depoimento dado à Antonio Carlos Bernardes, na cidade de Porto Alegre, em 08 de Dezembro de 2007.