Enquanto o ator tem necessidade extrema de acertar, o material de trabalho do palhaço é o erro – e ele é feliz em sua arte de fracassar

É importantíssima a qualquer ator, e, por que não dizer, a qualquer ser humano a sabedoria de rir de si mesmo. Somos, a todo o momento, cobrados a atingir metas, conquistar resultados, a não errar, e, nós, atores, somos muito mais cobrados a acertar, a sermos brilhantes, talentosos, virtuosos. A experiência de estar em cena, diante dos olhares e julgamentos do outro, pode ser dolorosa quando não conseguimos atender às expectativas do público, do diretor, da crítica ou a mais cruel de todas: à nossa própria expectativa. E isto, muitas vezes, pode até nos afastar da maravilhosa experiência de correr riscos.

O ator é uma criatura muito sensível, como diz Shakespeare, é feito da mesma matéria dos sonhos. Os atores podem ter a capacidade camaleônica de vestir a pele de diversos personagens. A competência de vivenciar em cena tramas variadas. De fazer refletir, rir, chorar, satirizar, chocar, fascinar, de causar emoções variadas e intensas. A alquimia de transformar o verbo em carne, a palavra escrita em expressão viva, tendo como matéria-prima o próprio corpo, voz, sentimentos e experiência de vida. No entanto, determinados atores, por vezes, sofrem excessivamente com a possibilidade do acaso, do erro, do julgamento e do fracasso.

A carreira do ator pode ser comparada aos bons vinhos, quanto mais velha melhor. A vivência, o valor da experiência, é o maior tesouro de um ator. Porém, acredito que os atores não precisam sofrer demasiadamente para exercer o seu ofício. Falo principalmente com relação ao julgamento do próprio ator para consigo mesmo. Os próprios períodos excessivos de ensaio são, às vezes, uma tentativa obsessiva de eliminar todo e qualquer risco, erro ou imprevisto. E alguns atores só fazem sacrificar-se, e por vezes acreditam que só pode haver sucesso se houver sofrimento, sem deixar quase nenhum espaço ao prazer de vivenciar o próprio ofício. Neste ponto, a bem da verdade em muitos outros, os atores contemporâneos têm muito o que aprender com outros ilustres artistas da cena: os palhaços.

O palhaço é um perdedor feliz. Enquanto o ator, na atualidade, tem necessidade extrema de acertar, o material de trabalho do palhaço é o erro. E o palhaço é feliz em sua arte de fracassar. Os palhaços revelam de forma dilatada os sentimentos humanos. Percorrem, com sua simplicidade e astúcia, do grotesco ao sublime, do ridículo ao encantamento. O palhaço sabe que, enquanto faz rir, está tocando na sua própria condição humana, imperfeita, falha, tosca, e que é esse o seu material de trabalho.

Um duplo e um amigo

Quero compartilhar com o leitor, mais uma vez, minha experiência própria, o quão precioso foi aprender diversas técnicas de palhaço. O quanto ser um aprendiz de palhaço pode colaborar com o ofício do ator.  O palhaço é como um duplo do artista, um amigo que o acompanha por toda a vida. Poderão mudar as apresentações, o repertório, mas continuará conosco, crescendo com os nossos erros e acertos. Tive a maravilhosa oportunidade de trabalhar, no Brasil e no exterior, com diversos mestres e caminhos de palhaço, sejam da tradição circense, do teatro de rua, dos bufões, e do próprio palhaço do teatro (mais conhecido como clown). Com cada um deles aprendi muito. Porém, gostaria de tratar aqui, especificamente, de uma tradição de palhaço muitas vezes esquecida e desvalorizada, a dos palhaços brasileiros de circo.

O espetáculo circense brasileiro é plural e único, pois, ao longo do seu desenvolvimento, não se ateve apenas às especificidades dos grandes circos de atrações, mas dedicou-se, também, no domínio dos pequenos e médios circos, à apresentação de dramas e comédias, características do denominado circo-teatro, bem como do chamado circo de variedades que busca mesclar as atrações circenses com shows diversos e até peças teatrais. E justamente o palhaço é o protagonista de todas as atrações nesses circos, das comédias ou dramas, shows, peças teatrais, entradas ou esquetes. Nas duas modalidades, seja no circo-teatro ou no de variedades, diferentemente dos grandes circos (onde o palhaço tem o papel de “tapa buracos” enquanto são montados os equipamentos dos grandes números), o palhaço é a figura central dos espetáculos dos pequenos e médios circos.

Essa pluralidade deu ao palhaço brasileiro a oportunidade de desempenhar papéis e funções que o espetáculo clássico europeu desconhecia. Como bem afirma Mario Fernando Bolognesi, autor do livro Palhaços: “Com efeito, no Brasil, além das entradas e reprises o palhaço teve e tem um lugar significativo na prática teatral que os circos desenvolveram e ainda desenvolvem.” (2003, p. 53). No circo brasileiro, um vasto repertório de comédias foi aos poucos sendo formado, possibilitando ao palhaço expandir suas formas de atuação. “Desse encontro adveio uma forma cênica aberta, formada e baseada na capacidade de interpretação e improvisação do palhaço, que teve a liberdade e a audácia de não estar restrito a gêneros fechados.” (Bolognesi, 2003, p. 53).

Bolognesi afirma que os roteiros das comédias circenses foram mantidos na memória oral dos palhaços, transmitindo-se de geração em geração. Além disso, os palhaços de circos pequenos, por serem a base do espetáculo e pelas características diferenciadas do pequeno circo, permanecem em cena um tempo muito maior, recorrendo assim às comédias de maior fôlego. Os palhaços têm um repertório de forte apego à linguagem oral, que pode ser encenada isoladamente, ou pode juntar-se às outras, num fluir ininterrupto, quando o ritmo e a duração são dados a partir da interação com a plateia.

Liberdade de criação

O palhaço apoia-se tanto na prática antiga e familiar dos atores circenses ao compor o seu personagem palhaço, de forma tradicional, como também é marcado pela singularidade do ator e sua liberdade de criação. “Desta forma, a atividade de criação, guiada pela liberdade, tornaria possível a exteriorização não apenas da realidade percebida pelo indivíduo, mas também das potencialidades das quais os indivíduos são portadores.” (PANTANO, 2007, p. 18). Embora a criação desses personagens se dê a partir de tipos fixos, constituídos no decorrer da história das máscaras cômicas, cada palhaço, no entanto, é único.

Muitas das habilidades do palhaço, principalmente do palhaço brasileiro de circo e rua, são utilizadas por mim nas encenações do Teatro Griô, como a atitude de contracenar com a plateia: a atuação, ora como palhaço, ora como um dos personagens interpretados pelo próprio palhaço*; as transições instantâneas de emoção, de ritmo e até de caracterização dos personagens; a criação de seu próprio personagem palhaço e a autoria de sua apresentação artística; a capacidade de rir de si mesmo e ao mesmo tempo de revelar o encantamento e o sublime através de elementos simples como um pedaço de tecido, uma flor, um instrumento artesanal ou um expressão facial, bem como a utilização do corpo como um todo expressivo, a transitar entre o grotesco e o sublime; a aptidão para criar atmosferas repletas de imaginação e poesia do mesmo modo que sai delas facilmente para revelar aspectos do cotidiano.

Estabelecem-se, portanto, intricadas relações entre o palhaço e o ofício do ator em meus processos criativos no Grupo Teatro Griô, desde uma abertura à oralidade na transmissão dos conhecimentos, até os procedimentos adotados no próprio desempenho cênico, como a organização dramatúrgica (de sua própria autoria, recorrendo, no entanto a tramas de tradição oral), a interação com o público, e a atitude do artista de conceber ele próprio seu personagem, que assume traços de sua própria personalidade.

Segundo Odette Aslan (1994), o que diferencia um ator de teatro, chamado dramático, do palhaço de circo, que atua em esquetes, são, sobretudo, o tom e o estilo da obra. E, ainda segundo a autora, seria mais comum que um artista do teatro de variedades conseguisse representar em um teatro de comédia, aparentemente sem grande esforço de adaptação, ao contrário do ator que custaria muito a ajustar-se às atividades paralelas dos circenses e do teatro de variedades. Aslan lista uma série de qualidades inerentes ao artista do teatro de variedades e do circo, como: segurar o público desde o começo; o dever de dar o máximo de seus esforços e da sua habilidade; saber sustentar sozinho a cena; atuar de maneira econômica e despojada; ter senso de improvisação; segurar o imprevisto; saber contracenar com o público; ter senso de ritmo, do efeito que utiliza o sentido do cômico; saber mudar rapidamente de roupa e de maquiagem, de personalidade.

Todas essas qualidades que acabo de expor, propostas por Aslan (1994), são também pertinentes ao processo de criação das encenações do Grupo Teatro Griô, à exceção da qualidade de saber mudar rapidamente de maquiagem, que não são imprescindíveis, uma vez que assumimos um personagem narrador que irá transitar entre diversos enredos e até a caracterização de diversos personagens das narrativas. Ele não precisa, necessariamente, mudar sua maquiagem, pois os personagens podem ser simplesmente esboçados a partir de expressões vocais características, ou da utilização de um fragmento de figurino, uma mudança no gestual, no ritmo, no deslocamento em cena, dentre outros elementos que podem ser utilizados sozinhos ou combinados entre si, a partir do jogo que se estabelece no desempenho do ator ao alinhavar a encenação das distintas tramas.

A vertente do circo-teatro brasileiro

O circo no Brasil manteve uma estreita ligação com o teatro e solidifica-se através de adaptações teatrais do chamado circo-teatro. “Pelo que sabemos essa modalidade do circo de representar melodramas, de fazer teatro, é uma característica do nosso circo”, segundo Pantano (2007, p. 26). O palhaço brasileiro tem, então, características singulares, que o diferenciam dos palhaços europeus, como a de ser o protagonista dos espetáculos circenses, devido às encenações de melodramas. Atua das mais diversas maneiras, como palhaço propriamente dito e com sua atitude nas cenas de circo-teatro assumindo variados tipos cômicos.

A metodologia por mim desenvolvida no Teatro Griô está mais próxima dos palhaços brasileiros de circo e rua do que dos clowns “europeizados”. Além da já citada maneira genuína com que o palhaço se destacou nos circos-teatros do Brasil, “o palhaço brasileiro, ao criar seu personagem, é despojado. Em sua maioria, eles descrevem seus personagens como ‘alegres’, ‘escrachadas’, ‘moleques’ etc.” (PANTANO, 2007, p. 29). Portanto, segundo Pantano (2007), o palhaço brasileiro mesclou algumas características desse palhaço e criou o seu próprio personagem, distinto do clown europeu de cara branca e com gestos delicados, que não existe mais em nossos circos.

Interessa-me frisar, mais uma vez, a relação do ator com o palhaço em sua expressão mais despojada, repleta de liberdade e subversão, sem esvaziamento do potencial grotesco, como ocorre em clowns que se apropriam do tipo cômico como linguagem desprovida da irreverência do circo e da rua e estão mais próximos de uma concepção que enfatiza apenas a docilidade e fragilidade do palhaço. Esse tipo de visão clownesca, que busca afastar-se do que é popular e muitas vezes “borrado”, aproxima-se mais de uma valorização poética de um ideal de beleza, a qual, ao rejeitar os aspectos mais “baixos” do palhaço, acaba aniquilando o seu lado marginal, ao perder contato com a espontaneidade popular, rude e ligada ao fracasso que justamente deu origem ao palhaço.

Note-se que é possível observar essa irreverência característica dos palhaços brasileiros dos pequenos e médios circos também em muitos palhaços de rua e até de alguns que surgem de uma experiência teatral, mas que não esvaziaram o potencial grotesco de sua composição. É o caso, além do Teatro Griô, de palhaços como André Casaca, Ângela de Castro, Natalie Mentha, Roberto Stamati, Tortel Poltrona, Luís Carlos Vasconcelos, Chacovachi e tantos outros. Nestes, é possível perceber toda a poesia e subversão em composições artísticas que não retiram do palhaço o seu ingrediente tosco e estúpido, ao contrário de uma concepção do palhaço como uma linguagem cheia de formalidades (para não dizer receitas), mais próxima de um ideal aristocrático que procura em muitos momentos afastar o clown do que seria a “grosseria” dos tradicionais palhaços.

Estupidez e astúcia juntas

O palhaço de tradição brasileira aproxima-se mais do tipo subversivo Augusto, “sua característica básica é a estupidez e se apresenta frequentemente de modo desajeitado, rude e indelicado. No Brasil, encontra-se no termo palhaço o equivalente mais apropriado do Augusto” (BOLOGNESI, 2003, p. 74), afastando-se do tipo oposto ao clown Branco, que tem como característica básica a boa educação, a elegância da tradição aristocrática, e que acabou desaparecendo de nossos circos e companhias cômicas populares. O palhaço brasileiro assimilou alguns aspectos do Branco e compôs um Augusto repleto de dualidade ao agregar num mesmo palhaço, ao mesmo tempo, a estupidez e a astúcia, a ingenuidade e a sagacidade, a tolice e a esperteza, a subversão à ordem e a vitória ao fracassar. Esse é um tipo de palhaço que aponta uma associação com o povo brasileiro, sendo muito bem representado em tipos como João Grilo, Pedro Malazartes, e o próprio anti-herói advindo da tradição africana, Ananse, que tece suas artimanhas para sobreviver diante da injustiça social.

O palhaço nos ajuda a perceber a importância de viver o momento presente. Aponta para o fato de que o melhor de um processo criativo é o próprio trajeto, assim como o valor de uma trilha é o próprio percurso. A admitir nossas imperfeições, sem precisar perder a alegria, e a aproveitar a vulnerável condição de ser humano como algo repleto de simplicidade, humor e poesia. O palhaço é dono de uma esperteza que não esvazia o potencial de ternura, ao buscar o revide a partir do riso, muitas vezes da capacidade de rir de si mesmo e encontrar no risco, no erro e na derrota a possibilidade de ser feliz.

Os palhaços que atuam nos circos-teatros, ao representar comédias ou dramas, caracterizam-se diferentemente da personagem/palhaço, criando assim um tipo, uma outra personagem”. (PANTANO, 2007, p. 26).

ASLAN, Odette. O Ator no Século XX. São Paulo: Perspectiva, 1994.

BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Unesp, 2003.

CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio da Bobagem – palhaços no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: Editora Família Bastos, 2005.

CASTRO, Angela de. A Arte da bobagem-Manual para o clown moderno. Londres: The Why Not Institut, 1997.

SOUZA, Rafael Morais de. Na Teia de Ananse: um griot no teatro e sua trama de narrativas de matriz africana. Universidade Federal da Bahia, Escola de Teatro, 2011.

PANTANO, Andréia Aparecida. A Personagem Palhaço. São Paulo: UNESP, 2007.

Rafael Morais

É narrador, ator, diretor e professor de Teatro, radicado em Salvador (BA). Mestre em Artes Cênicas – UFBA, é também Coordenador Artístico do Teatro Griô, grupo com o qual realiza diversos projetos inspirados na Tradição Oral, Teatro e Arte de Narrar histórias.

Obs.
Texto inicialmente publicado no site Pecinha É a Vovozinha!