Barra

A criança ao nascer traz consigo toda uma bagagem herdada e adquirida durante seus nove meses de vida intrauterina. Por isso, ela já nasce com uma identidade que a diferencia das outras crianças. Já ao nascer é um indivíduo e não uma massa informe que se pode moldar a gosto.

Evidentemente, quando falo na identidade de um recém-nascido, há que se levar em conta que se trata de uma identidade rudimentar e muito mais flexível e moldável do que a de um adulto. Mas é, inquestionavelmente, uma identidade.

Por isso é que vemos, no nosso dia-a-dia, crianças muito pequenas, recém-nascidas mesmo, muito diferentes uma das outras. Umas são mais agitadas, outras mais calmas; umas mais sensíveis, outras mais agressivas; umas mais vorazes outras mais frugais. São esses tipos de diferenças, entre outras que seria exaustivo citar, que já define cada criança como um indivíduo.

Esse bebê, já com características próprias, é que vai se relacionar com o meio, modificando-o e por este sendo modificado. Por exemplo: uma criança agitada com uma mãe ansiosa formará uma relação bastante diferente da que formaria se tivesse uma mãe tranquila e tolerante.

A não ser naqueles casos especiais que se tornaria enfadonho relacionar, a primeira relação da criança é com a mãe.

O mundo subjetivo da criança

Com poucos dias de vida a criança é capaz de reconhecer a própria mãe pela voz e pelo cheiro. Já ao nascer sabe muito sobre ela: pode reconhecer entre muitos outros o ritmo de seu coração ao qual se habituou durante os nove meses em que viveu dentro dela. A vista se desenvolve desde o primeiro momento; pode fixar os olhos num objeto e distinguir a luz da sombra. Sua capacidade de reconhecer os sabores é muito notável, já desde as primeiras horas de vida, e todas estas experiências vão configurando em sua mente a imagem da mãe.

De início, a criança sente a perda do conforto de viver parasitariamente no ventre materno. De receber alimento, oxigênio, vida enfim, retirados da própria mãe. Mas essa perda vai sendo mitigada pelo bom contato físico, o qual lhe permite poder elaborar essa primeira e grande perda.

Segundo o enfoque psicanalítico de desenvolvimento, nos seus primeiros meses de vida, a criança ainda não consegue perceber o que é presença e ausência. Assim, o bebê quando sente fome e é alimentado por sua mãe, é segurado e assegurado pelo abraço que o contém e que o leite tranquiliza e aquieta. A sensação desprazeirosa que sentiu dentro de si, que o pôs ansioso, sua fome, foi eliminada pela presença da “mãe boa”.

Porém, enquanto a “mãe boa” não vem é a “mãe má” que é sentida como presente e causadora dessa sensação desagradável de fome. É por isso que, por muitas vezes, podemos observar crianças que choraram muito tempo por alimento, e que quando este lhe é proporcionado, ela apesar de faminta o recusa, pois o sente como o alimento que lhe causa dor, o alimento perigoso proveniente da “mãe má”.

Esse dualismo “mãe boa” – “mãe má” foi transposto e se encontra presente em muitas estórias infantis. Ora assistimos o duelo entre a fada e a bruxa, ora é a mãe boa que morre e é substituída pela madrasta que é uma peste e persegue sem descanso a heroína dos contos. Branca de Neve é o caso típico: teve uma “mãe boa” que morreu e que foi sucedida pela madrasta, bruxa, “mãe má”, que lhe oferece uma maçã envenenada – o alimento que mata.

Com a continuação do desenvolvimento da criança, ela vai se diferenciando da mãe, pois se produzem mudanças fundamentais na sua mente e em seu corpo. Estas mudanças ocorrem entre o 3.° e o 4.° mês de vida.

Agora, ela já conhece sua mãe. Às vezes a ama, às vezes a rejeita, assim como se sente amada e rejeitada por ela. Já sabe tocar e brincar com o corpo de sua mãe. Neste estágio, o objeto de seu amor e de seu ódio é a mesma pessoa. Essa revelação de totalidade inicia um processo, de desprendimento que conduzirá a criança ao pai e ao mundo circundante.

É ao redor do 4.° mês de vida que a criança começa a brincar. Brincar para ela significa elaborar os conflitos que se passam no seu mundo interno. A “mãe boa” e a “mãe má” são a mesma mãe. Ausência e presença já são entendidos como tal e a criança sente a angústia da separação. Os objetes funcionam como símbolos e ela brinca simbolizando seus conflitos. O pedaço de fralda que a criança leva à boca, e atrás do qual se esconde, representa a mãe.

É assim que a criança tem sempre a mãe junto de si, mesmo;que seja sob a forma de uma fralda. Quando ela se esconde, colocando a fralda no rosto, faz com que o mundo em torno apareça e desapareça igualmente à sua mãe que também aparece e desaparece, por vezes. Assim ela entende e experimenta que pode perder e ter de volta. Brinca também com os próprios olhos: ao fechá-los perde o mundo (mãe) e ao abri-los o tem (a tem) de volta.

Descobre também através de uma brincadeira, que é a mais incômoda para os pais: a de jogar as coisas no chão para que as pessoas apanhem. É que não jogam para molestar, mas para intuir, experimentar e elaborar que as pessoas, os objetos, tanto podem aparecer como desaparecer.

No decorrer dos quatro aos seis meses de vida, a criança sente crescer suas angústias de perda e, paradoxalmente, quando tem condições de brincar para elaborar suas ansiedades é quando mais reclama a presença da mãe. Não reclama sua presença apenas como fonte de alimento, mas principalmente para estar certa de que não desapareceu.

É então que começa o doloroso processo de abandonar a relação única com a mãe e aceitar, em forma definitiva, a presença do pai.

É por ocasião do aparecimento dos dentes que as tendências e fantasias destrutivas da criança se incrementam. E o desprendimento, até então fruto da fantasia, se converte em realidade.

Os fundamentos de sua vida mental se constroem no primeiro ano de vida, assim como seu mundo lúcido se origina nesses primeiros jogos de perda e recuperação, de encontro e separação.

O encontro com o 3.° (pai) lhe provoca ciúmes, na medida em que percebe que sua mãe se separa dela para ficar com o pai. A situação triangular se instala e começa o reconhecimento das diferenças sexuais e as identificações com o pai, com a mãe, e com o casal.

Os primeiros meses de vida da criança são povoados predominantemente por ansiedades de tipo persecutório. A “mãe má” que a persegue causando-lhe fome, dor e todas as sensações desagradáveis e que, portanto, é preciso ser atacada, destruída. As fantasias da criança são mágicas: ela fantasia que destrói e sente concretamente que destruiu. Podemos correlacionar esta fantasia com a do adulto que, num momento de raiva, fala ou pensa: “eu quero é que morra”. E a pessoa, objeto de seus pensamentos raivosos, incidentalmente morre mesmo. Se esse adulto não tiver elaborado bem seus aspectos infantis, poderá entrar em culpa, achando, magicamente, que o simples fato de ter raiva de alguém, mata. Pois tal é o pensamento mágico: “Penso, logo acontece”.

Existe, nessa primeira fase do desenvolvimento infantil, o medo da retaliação. A Lei de Talião é a que impera na psique infantil: “Olho por olho, dente por dente”. O próprio adulto, com o qual exemplificamos a fantasia mágica, pode pensar que agora ele será castigado com a morte, por ter desejado a morte de uma pessoa.

Na medida em que vai havendo o reconhecimento, por parte de criança, de que “mãe boa” e “mãe má” são uma única e mesma mãe, ela sente que sua raiva e seu amor eram dirigidos à mesma pessoa. Passa então a existir a necessidade de reparar os danos causados a essa mãe. No anseio da criança para recriar os seus objetos perdidos encontra-se o impulso para recompor o que dilacerou, reconstruir o que destruiu, recriar e criar, na sua fantasia mágica.

É neste ponto que se pode observar a gênese da formação de símbolos. Para poupar o objeto (mãe) a criança inibe seus impulsos e, em parte, desloca-os para substitutos. Inicialmente com os brinquedos e mais tarde através da sublimação com palavras, torna-se possível recriar o objeto ausente.

Portanto, na idade em que uma criança começa a frequentar o teatro, sentimentos tais como: culpa, amor, ódio, inveja, ciúme, competição, medo, tristeza, alegria, não são nenhuma novidade, por que ela já os experimentou, e experimentará sempre.

Qual é a função do teatro na vida da criança, levando-se em conta o que já foi dito? O que poderia ser chamada de uma “boa” peça infantil? Será pernicioso mostrar à criança lutas e mortes?

Essas e muitas outras perguntas são colocadas, são motivo de inúmeros debates.

O autor quando escreve uma peça, seja ela infantil ou não, está criando. E, ao meu ver, todo ato de criação implica num investimento amoroso. É uma comunicação. Toda obra de arte necessita de outro para falar-lhe. Seja ela um quadro, uma música, uma poesia. O ato de criação implica, apesar do seu autor, no reconhecimento do outro, e de si mesmo. Não importa o que o autor faça depois que criou. Pode ter escrito algo que depois rasgou. Mas, no momento em que criava, criava para entrar em contato com o outro, nem que o outro fosse ele mesmo.

Respondendo a uma pergunta sobre o que diferencia o neurótico divagador do artista, Freud escreveu: “O artista descobre um meio de regressar do mundo de fantasias, com seus dotes especiais afeiçoa suas fantasias a uma nova realidade”. E, segundo Hauna Segai “Com efeito, poder- se-ia dizer que o artista tem um agudo senso da realidade. E dois aspectos pelo menos mostra um sentido de realidade muito elevado. Um é com sua própria realidade interna, e o outro em relação ao material de sua arte. Por mais neurótico que Proust fosse na dedicação à sua mãe, na sua homossexualidade, na sua asma, etc, ele possuía uma visão extraordinária real em seu íntimo, do mundo fantástico das pessoas. O segundo aspecto é quanto ao material que utiliza, é uma avaliação altamente especializada da realidade, natureza, necessidade, possibilidades e limitações do seu material, quer se trate de palavras, sons, tintas ou barro”.

É com esses elementos, então: o conhecimento do mundo interno do homem e do material que vai utilizar é que é criada a obra de arte. Quando falo do conhecimento do mundo interno, não quero dizer conhecimento consciente ou científico, e sim um conhecimento fruto da intuição e da sensibilidade.

Qual, portanto, a função do teatro na vida da criança?

Acredito que seja a mesma que desempenha na vida do adulto. Isto é, a de representar em “poesia em movimento no espaço”, como diz Antonin Artaud, os conflitos e anseios do homem.

Seja numa linguagem infantil ou adulta, seja na forma de comédia, drama ou tragédia, não importa: o amor, o medo, o ódio, a perseguição, a inveja, o ciúme, a alegria, a competição, o mágico, a luta pelo poder, a separação, a culpa, a perda, a busca, o encontro, estão sempre lá.

Vejamos, como exemplo, a peça Cavalinho Azul, de Maria Clara Machado. A personagem principal, Vicente, perde o seu pangaré, que ele acreditava tratar-se de lindo cavalo azul. E sai pelo mundo à sua procura, acreditando firmemente que o cavalo é azul, apesar de sabermos que se trata de um velho pangaré já sem cor definida. Quem, entretanto, não perdeu algo, quando criança, ou mesmo já adulto, que era considerado pelos outros sem valor nenhum, mas que para o que perdeu pra lindo, maravilhoso, insubstituível? Vicente encontra seu cavalo azul que, na cena final, aparece azul mesmo, lindo, como o menino imaginava que fosse.

Uma separação, a busca e o encontro do objeto amado. Crianças e adultos choram ou riem nesse final comovente. Estamos diante de uma obra de arte que observa uma linguagem ao nível do entendimento infantil, mas que trata do que está presente no mundo interno da criança e na criança que cada adulto carrega dentro de si.

O teatro revela em ação e palavras aquilo que a criança conserva no seu mundo de fantasia e que lhe permite se identificar com este ou aquele personagem vivendo, intuindo e elaborando seus conflitos. Da mesma maneira que a criança repete vezes sem conta uma mesma brincadeira, ela vê inúmeras vezes uma peça que dramatize seus conflitos.

Pergunta-se muitas vezes se cenas de lutas, de lobos que engolem vovozinhas, de baleias que engolem crianças, de bruxas que engordam crianças para depois come-las; se tudo isto não é pernicioso à mente infantil.

Acredito que não, pois no mundo interno da criança passam-se fantasias aterrorizantes, tanto ou mais do que as destas cenas. Vendo-as fora de si, no palco, a criança sente que as controla, podendo entendê-las e elaborá-las.

Sobre o problema, o Dr. Maurício Knobel, psicanalista argentino, diz o seguinte no seu livro Infância, adolescência e família”, “Sobre a incompreensão da violência” :

“O crime e a violência de crianças e jovens revela a atitude adulta deste mundo e suas circunstâncias; a raiz desses conflitos deve-se buscar na vida familiar e social.

Vi uma dessas crianças que jamais brincaram com um revólver – já que os pais não lhe permitiam – atacar com um apontador um coleguinha que não lhe quis emprestar o caderno.

Uma jovenzinha de 15 anos, educada muito rigidamente, me revelou a mais promíscua das condutas sexuais imagináveis, para ver se o que diziam que era tão mau, realmente o era.

Outra criança que foi criada segundo uma metodologia “construtiva”, e a quem desde sua mais tenra infância foram dados brinquedos de armar, concebeu uma verdadeira máquina infernal com a qual incendiou sua casa.

Insistimos em que a severidade e a incompreensão familiares são os germens desses e muitos outros transtornos. Maior amor e compreensão permitirão ver e acentuar os aspectos mais positivos da existência – o ângulo da vida – com o qual forçosamente terá que enfrentar o enfermo, o destruidor que a humanidade alberga. O mal não desaparece pelo autoengano, com esse autoengano só encobrimos nossas próprias tendências agressivas”.

Acredito que o trecho responde às perguntas sobre o problema de que se deve deixar ou não as crianças verem cenas de violências sob a forma de teatro, de faz de conta.

Restam apenas algumas considerações sobre a orientação do autor de peças infantis, sobre o “como criar para crianças, como entender o mundo delas, como abordar as diversas situações em função da compreensão e da sensibilidade infantis”.

A meu ver, o problema da criação para crianças é o problema de atingir o nível de suas fantasias. O adulto também fantasia. A obra de arte para adultos também está envolta em fantasias. Mas a mente da criança está mais especificamente voltada para o fantástico, para o mágico, para o maravilhoso. A realidade ainda não se apoderou totalmente dela. Os dragões e as fadas boas e más ainda povoam o seu inundo.

É com a sensibilidade que se pode, portanto, entender o mundo delas. O artista, o criador, é aquele que possui uma sensibilidade apurada. O dom de “entender” os outros, aquilo que no vocabulário especializado se denomina “Empatia” e que significa “sentir com”, ter a capacidade de se colocar no lugar do outro e “sentir como ele”.

No célebre “método” de Stanislavski para a formação de atores, um dos principais dons requeridos do intérprete é o de possuir a “lembrança das emoções”. Em certa medida todos nós possuímos esse dom. Mas nos artistas ele deve ser marcante. Será, pois, com a “lembrança das emoções” que o autor poderá compreender a sensibilidade infantil. Porque todos já foram crianças. Todos passaram por todas as fases que acompanham o amadurecimento progressivo do ser humano.

Não se trata de empregar palavras no diminutivo. Para se chegar perto de uma criança não é necessário imitar os balbuceios infantis. O que é necessário é sentir com, é afinar a sensibilidade para atingir aquele núcleo de emoções que é de toda criança, como já foi e, em certa medida continua a ser, de todos nós.

Quanto ao que é bom teatro infantil ou mau teatro infantil é difícil responder, Em geral o tempo se encarrega de realizar a separação entre o joio e o trigo, entre o bom e o mau. Eternizando o que é bom e fazendo cair no esquecimento o que é mau.

Barra

Bibliografia

Arminda Aberastury, El nino y sus juegos, Editorial Paidós, Buenos Aires
Constantin Stanislavski, Preparación dei actor, Editorial Psique, Buenos Aires
Grimm, Contos de Grimm Novos contos de Grimm, adaptação de Monteiro Lobato, Editora Brasiliense, São Paulo
Hanna Segai, Uma concepção psicanalítica da Estética Introdução à obra de Melaine Klein, Companhia Editora Nacional, São Paulo
Maria Clara Machado, O cavalinho azul, Livraria Agir Editora, Rio de Janeiro
Melanie Klein, Fontes do inconsciente, Zahar Editores, Rio de Janeiro
Sigmund Freud, “Formulations regarding the two mental principles”, Collected papers, Hogarth Press, Londres

Barra

Monica Laport
É especializada em psicologia clinica, faz terapia de base analítica em crianças e adolescentes. Curso de Psicodrama com Viviana Gotari (psicóloga argentina), um ano de Curso de Formação de Ator no Con­servatório Nacional de Teatro curso de improvisação com Maria Clara Machado, experiência de Teatro Infantil como atriz no Tablado e no Teatro Ipanema.

Barra

Obs.
Este texto foi retirado da edição especial da Revista de Teatro da SBAT, referente ao Seminário de Teatro Infantil de Curitiba de 1975, organizado pelo antigo Serviço Nacional de Teatro, do MEC, realizado no Auditório Salvador de Ferrante da Fundação Teatro Guairá, em Curitiba, no período de 3 a 7 de fevereiro de 1975.

Fazem também parte desta Revista os seguintes textos, que também poderão ser encontrados neste site:

Apresentação do Seminário de Teatro Infantil – 1975, de Orlando Miranda de Carvalho e Beatriz Veiga
A Criança e a Linguagem Televisual, de José Renato Monteiro
A Coragem de Fazer Teatro Infantil, de Maria Helena Kühner
A Propósito de um Concurso de Textos para Teatro Infantil, de Oscar Von Pfull
Desenvolvimento da Linguagem Teatral da Criança, de Helena Barcelo
Possibilidades do Teatro como Processo Educativo, de José Antônio Domingues
Observação Pessoal sobre o Julgamento de Textos para Teatro Infantil, de Zuleika Mello
O Mundo Subjetivo da Criança e sua Interação com o Teatro, de Monica Laport
Realidade Atual do Teatro Infantil no Estado da Guanabara, de Ana Maria Machado
Teatro, Educação Tridimensional, de Joana Lopes