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O conto de Walter Piroli é considerado internacionalmente uma obra prima da literatura infanto-juvenil. Tanto é verdade que já foi traduzido em inúmeros idiomas como o inglês, o espanhol, o polonês, o hebraico, o libanês e o tcheco. Foi várias vezes editado desde o primeiro lançamento, em 1977, estando já na décima terceira em 1986, edição utilizada por Pedro Oliveira e Graça Coutinho para a adaptação teatral.

Associo-me aos que afirmam ser a tradução ou a adaptação muito mais que um trabalho de transposição de um texto de uma língua para outra ou da reorganização de um gênero em outro. Trata-se, efetivamente, de uma tarefa de transcrição, termo cunhado pelos poetas concretos Augusto, Haroldo de Campos e Décio Pignatari, mestres da arte de transcriar poemas para o português. Traduzir e adaptar são, portanto, atividades em que não se pode perder de vista a essencialidade do texto base quando de sua transmutação para outra língua ou gênero.

Quando Pedro e Graça propuseram a Walter Piroli a transcrição do conto para um musical, foram informadas pelo autor que ele já havia recebido muitas propostas anteriores com as quais não concordara. No entanto, o trabalho desenvolvido pela dupla o agradara tanto pelo fato de terem eles aproveitado ao máximo o texto original quanto por terem orquestrado com equilíbrio o acréscimo e/ou a eliminação de determinados elementos que na forma dramatúrgica enriqueciam a trama.

Se por um lado Pedro e Graça tinham, de imediato, um dado facilitador para a adaptação, isto é, o fato do conto ser predominantemente construído em diálogos, por outro, defrontavam-se com um elemento complicador delicadíssimo – o tema central – a desilusão, o medo da perda, a perda, a morte.

O Menino e o Pinto do Menino guarda uma das características mais marcantes da obra do autor: abordar temas cotidianos de maneira coloquial, direta, em estilo simples e seco.

Apesar da ambiguidade do título que, numa primeira leitura, remete à idéia de tratar-se de uma história sobre a descoberta da sexualidade, o conto narra a experiência de Bumba, o protagonista, um menino de quatro anos, que no Dia da Criança recebe da professora um pintinho de verdade. A mãe vai buscá-lo na escola e o menino, temendo ser proibido de levar o bichinho para casa, esconde-o sob o casaco. A mãe explica que não poderá entrar no ônibus com o pinto e que tão pouco poderá tê-lo em casa por ser proibido pelo regulamento do edifício ter animais. Além disso, tenta convencer o menino que um apartamento não é o habitat de pintos. Propõe que o pinto seja deixado na casa da avó, pois lá há quintal, espaço, terra. O Bumba não se conforma e tanto insiste que a mãe acaba cedendo. Daí por diante uma série de acontecimentos vão se sucedendo até culminar com a morte do pinto.

Quando convidados por Pedro e Graça para musicarmos o texto. Guilherme Maia e eu nos deparamos com a mesma dificuldade dos adaptadores no que se referia a temática e com o mesmo elemento facilitador no que concernia à simplicidade e a dinâmica da trama que havia sido mantida em plenitude. Concluímos, então, que cabia-nos a construção de um outro texto (poético-musical) que deveria se desenvolver paralelamente, de forma simultânea e integrada à trama central, mas que, em nenhum momento, poderia adiantar, retardar ou “entregar” situações do desenrolar da ação.

A experiência foi extraordinariamente gratificante na medida em que, através das canções, fomos temperando diferentes climas, sempre atentos para que o desfecho não se transformasse num “baixo astral” que levasse as crianças à depressão ou ao choro na saída do teatro. O grande desafio era, portanto, manter, através da música, o mesmo efeito de obra aberta conseguida por Piroli no conto e mantido no texto teatral dos adaptadores.

À medida que íamos compondo as canções, percebíamos que o texto musical ora sublinhava, ora destacava personagens que originalmente eram secundários, contribuindo positivamente na sintaxe da montagem. Além disso, o gênero musical escolhido para cada momento era um dado fundador para a dinâmica do espetáculo.

Guilherme Maia e eu tivemos a preocupação de trabalhar, nas doze canções originalmente compostas, com a maior gama possível de gêneros musicais para que, desta forma, a variedade rítmica fosse também um elemento enriquecedor do texto. Sendo assim, fizemos entre outras canções, um rock (O Rock da Galinha Abatida), cantado na versão original por Elza Soares e que conta à história de uma galinha de granja que narra com total naturalidade o fato de que ela nasce e é criada para ser consumida como alimento. Um Blues (The Pinto Blues), cantado pela empregada da casa que diz ao menino que apartamento de pinto é caixa de papelão. Há ainda um tango (O Tango da Mãe), que é cantado no momento em que a mãe se desespera com a quantidade de tarefas que é obrigada a cumprir no seu dia-a-dia. Ao pai coube um rap (Um Dia Infernal), em que ele narra o seu cotidiano no jornal onde trabalha e as loucuras da vida numa grande cidade. Além disso há um Parabéns, comemorativo do aniversário do pinto. Na canção que encerra o espetáculo e que demos o título de De filho pra Pai, procuramos nos colocar no lugar de Bumba, o nosso protagonista, para nos questionarmos sobre a vida.

Dizem os versos:

Tem o dia pra brincar
Tem a noite pra dormir
Quando a lua vem é porque o sol já pode ir
Como é o nome daquele lugar
Onde o céu azul encontra com o mar
E o que será que vai acontecer
Se eu atravessar

Faz o coração bater
Faz a gente respirar
Vida o que é você?
O que é vida?
O que será?
Coisa que você não pode explicar
Porque sou pequeno e não vou entender
Diga pelo menos quanto tempo mais
Cara quanto tempo ainda falta pra eu crescer?

Pai me diz pra onde o caranguejo vai
Desse jeito andando para traz?
Não entendo como lagartixa faz
Anda na parede, mas não cai?
Qual é o segredo desse beija-flor
Fica paradinho assim no ar?
E o camaleão que eu não consigo achar
Só pra se esconder mudou de cor?

Eu não sei o que essa coruja tem
Passa a noite toda sem dormir
E o sapo que perigo
quando faz xixi
Se cair no olho de alguém
O que foi aquilo que a baleia fez?
Pra que serve aquele chafariz?
E porque será que o papagaio diz
Diz a mesma coisa toda vez?

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Fred Góes
Mestre em Sistemas de Comunicação e Prof. e Dr. em Teoria da Literatura da UFRJ, Rio de Janeiro.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 1º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1997)