Crítica publicada em O Estado de São Paulo – Coluna Palcos e Circos
Sem Identificação – Rio de Janeiro – 21.11.1948

O Casaco Encantado

É impressionante o acolhimento que teve essa peça infantil da Sra. Lúcia Benedetti lançada no Rio com muito carinho, mas sem maiores pretensões comerciais, em espetáculos realizados exclusivamente pela manhã, o seu êxito foi de molde e contrariar todos os planos preestabelecidos: O Casaco Encantado acabou por expulsar a peça de cartaz, substituindo-a e tomando conta inteiramente do teatro. Agora em São Paulo, apresentada com publicidade relativamente pequena, alcançou o mesmo êxito.

Isso indica, antes de mais nada, que as Sras. Morineau e Benedetti encontraram um filão inesperado. Há certos desejos e aspirações comuns à espera de alguém que intuitivamente consiga apreendê-los e formulá-los, dando-lhes a vida e forma concreta. Tal é o caso do teatro infantil entre nós, pelo que ficou agora demonstrado.

Um dos grandes méritos da encenação de O Casaco Encantado foi, portanto, o de indicar uma nova direção, o de abrir caminho para realizações futuras. Não que a peça não possua outros méritos. Julgada por si mesmo, pelo que é e não pelo que representa, O Casaco Encantado constitui da mesma forma uma peça interessante, perfeitamente capaz de satisfazer o requisito essencial para que uma obra de literatura infantil também se transforme em obra-de-arte e a qualidade de agradar indistintamente e adultos e crianças. Se não nos opusermos a isso, através de nossa malícia e nossa vaidade de grandes, encontraremos quase tanto prazer na peça da Sra. Benedetti quanto esses pequerruchos que não se acanham de apupar valentemente e vilão ou de ir receber a benção da vovozinha, nos intervalos. Essa atitude de inocência receptiva (a que certa porção da arte moderna já nos vai habituando) não é, aliás, difícil como parece, pois há entre adultos e crianças, em estado potencial, um poderoso denominador comum, representado pelo medo do sobrenatural, esse medo que a civilização nos ensina a domesticar e a disfarça convenientemente mas nunca a eliminar-se por completo. O Casaco Encantado, como todas as boas realizações do gênero, não só nos faz voltar a nossa infância, mas também nos coloca, de certo modo, diante da própria infância da humanidade, revivendo o mundo extraordinariamente livre e colorido do primitivo, ainda não desumanizado pela ciência, mundo onde tudo pode acontecer, onde cada acontecimento, cada objeto por vulgar que seja (como um casaco…) pode ter uma significação misteriosa e humana, exprimindo-se em termos do bem e do mal. Com isso, recuperamos, em parte, a poesia e o caráter de coisa espantosa de que se revestiu o teatro em outras eras.

A Sra. Morineau e o Sr. Graça Melo – e responsável pela encenação – não se deixaram enganar pela aparente facilidade da peça ou pela possível ausência de espírito crítico por parte do público infantil a que esta se dirige.

Encenaram-na com a maior probidade e amor. Desde os cenários e figurinos de Nilson Penna, de modo geral excelentes, até a maneira de representar, mais corporal e física que vocal, mais dança que diálogo, tudo serviu para realçar o texto. Morineau compôs uma “bruxa” deliciosamente cômica e simpática, uma de suas melhores criações, o que não é dizer pouco. A seu lado, Dary Reis, Fregolente, Jacy Campos, Orlando Guy e Graça Melo, (que, como ator, tem o único defeito de trair ainda em demasia a influência de Ziembinski) estão igualmente muito bons.

Se a tantos elogios quiséssemos apor finalmente uma restrição, diríamos que o único defeito do espetáculo parece estar na relativa ausência de graça da peça. Num espetáculo como esse, segundo nos parece o maravilhoso e o cômico devem andar a par. Não foi o que aconteceu: aquele predominou francamente. Quando a Senhora Benedetti escrever uma obra que, conservando as atuais e não poucas qualidades, aliar a elas maior dose de comicidade (essa comicidade infantil tão difícil de alcançar), teremos não uma peça, mas a peça do teatro infantil brasileiro.