Neste texto, escrito há 55 anos pela saudosa crítica do Rio, há uma bronca que ainda é atual e precisa ser levada em conta pelas produções

Deve causar não só preocupação, como mesmo alarme, a todos os que se interessam pelo desenvolvimento do teatro e pela formação cultural de nossa infância, o fato de que os grupos de teatro infantil proliferam na ração direta de sua falta de qualidade e critério.

Dois erros básicos, muito embora totalmente opostos, são os mais comuns nesse gênero de atividade, e ambos se originam no desconhecimento da natureza do teatro como arte independente e legítima, bem como de suas características essenciais. Abandonando o caminho do teatro, os que erram descambam para dois campos opostos: o da suposta pedagogia e o da exacerbação emocional gratuita, ambos esquecidos de que o teatro é uma experiência artística, estética, uma experiência independente, autônoma, ligada ao que é definível especificamente como uma ação dramática.

Que o teatro educa, não há dúvida, ou, melhor dizendo, pode educar, mas deve educar pelos seus próprios meios, pelo aprimoramento de conceitos estéticos, pela ampliação da experiência de conhecimento humano, e nunca pela lição de moral impingida, soletrada e empurrada goela abaixo a qualquer preço.

Há pessoas que passam a vida a tirar citações de Shakespeare e encontrar aplicação para as mesmas, fora de contexto, em todos os assuntos, desde hábitos de higiene até as boas maneiras à mesa ou na sociedade, mas por certo a culpa não é de Shakespeare, que tratou de temas em termos dramáticos que expressaram determinadas ideias, mas que por certo não tinham a intenção de ensinar ninguém a usar o guardanapo. Dramatizações de determinados acontecimentos como instrumento didático momentâneo é um outro assunto completamente à parte.

Apostam corrida no palco

Do outro lado, está alguma coisa de ainda muito mais comprometedora, o grupo que junta meia dúzia de frases feitas ou ideias apropriadas a contos de fadas ou similares, e a partir disso apostam corrida em volta da plateia e no palco, fazem concursos de potência vocal com os espectadores e, de modo geral, deixam-no num tal estado de superstição gratuita – sendo mesmo nefasta – que deve criar inúmeros problemas para os incautos, pois que pagaram seu dinheiro na busca de uma atividade dominical para a prole.

Mas o que foi que aconteceu com o teatro infantil para que chegasse ao ponto de loucura a que chega agora? Não é difícil encontrar a explicação:  não há por aqui (no Rio) nada o que se fazer com as crianças nos fins de semana, a não ser ir à praia (quando não chove) ou ao cinema (quando há algum filme de censura livre que não seja uma das monstruosidades que deviam ser proibidas por um juizado estético de menores), e admitamos que não há pergunta mais angustiante do que aquela: “O que é que eu vou fazer?”, ilustrada pelo ‘arregalamento’ de dois olhinhos sequiosos de saber o que é que este estranho mundo tem para oferecer a uma curiosidade insaciável.

O resto do mecanismo é simples: um grupo começou a fazer teatro infantil bom, íntegro, e fez sucesso. Com a descoberta daquela fonte inesgotável de bilheteria, não houve quem não visse o golpe que era fazer teatro infantil e toca a fazê-lo, de qualquer maneira, para aproveitar o filão. Pior do que isto, inventou-se que escrever para teatro infantil é fácil, acessível a quem não consegue escrever para teatro sem limite de idade, e multiplicaram-se os textos que variam do estarrecedor ao inenarrável.

Bárbara Heliodora

Crítica teatral.

Obs.
Texto publicado originalmente no ‘Suplemento Dominical’ do extinto ‘Jornal do Brasil’ (Rio), em 09 de abril de 1961. Percebam que já naquela época a crítica Bárbara Heliodora tocava em pontos cruciais, como a proliferação de peças ruins, o excesso de didatismo equivocado, o oportunismo de grupos sem qualidade e a confusão entre o que é arte e o que é aula. Posteriormente texto publicado no Site Pecinha É a Vovozinha.