Os Bonecos de Pedro Touron são, apresentados às crianças como bonecos mesmo, não como seres mágicos do teatro tradicional de fantoches.

A participação das crianças é grande.

Matéria publicada no Jornal do Brasil – Caderno B
(3 col x 66 cm)
Por Yan Michalski – Rio de Janeiro – 20.04.1970

Barra

Teatro de Bonecos – Mentirinha Perdeu a Vez

Na plateia, um grupo de crianças embevecidas e surpreendentemente quietas para sua idade – em torno de cinco anos, em média. No palco, alguns bonecos em movimento – uma sereia, dois piratas, a bela Rosinha e seus dois cavalheiros – concebidos e executados com a sensibilidade plástica que caracteriza os trabalhos do teatro de bonecos de Ilo e Pedro. Entre à platéia e o palco duas intermediárias: moças vestindo roupas comuns, que narram parte da história, conversam com o público e com os bonecos e sobretudo tocam e cantam música, muita música; servindo-se de uma variada coleção de instrumentos de sopro e percussão. De vez em quando, a cortina atrás da qual ficam escondidos os manipuladores dos bonecos levanta-se os titeriteiros aparecem aos olhos da plateia mostrando ás crianças o mecanismo da manipulação cantando fazendo graças e quebrando voluntariamente a ilusão de realidade que constitui tradicionalmente o espírito do espetáculo infantil. De repente uma das intermediárias retira do palco a sereia e começa a pentear ás crianças percebam claramente que a sereia não é uma sereia e sim uma boneca que precisa ser penteada de vez em quando, como qualquer boneca que se preza. Quase ao final do espetáculo, as duas moças distribuem seus instrumentos ás crianças. Convidando-as a tocar junto com elas o que dá margem ao surgimento de um conjunto cacofônico, mas impressionantemente espontâneo e animado.

Estes são alguns flagrantes colhidos durante uma sessão de Músicas do Mar, segunda de uma série de espetáculos infanto-experimentais que o Teatro de Bonecos de Ilo e Pedro está levando a efeito no Teatrinho Arreliquim, em Ipanema. O primeiro espetáculo da série foi Concerto para os Mais Pequenos. Pontos comuns entre os dois: tentativas no sentido de familiarizar a criança com a boa música – evidentemente acessível á sua capacidade de assimilação e experiências no sentido de desmistificar o boneco e colocar a criança numa atitude até certo ponto distanciada em relação ao espetáculo.

Fantoches ensinam Música

Pedro Touron, autor e diretor de Concerto para os Mais Pequenos e Músicas do Mar, explica:

“Há algum tempo sentíamos a necessidade de afastar-nos do teatro baseado no enredo, que para o nosso público, composto de muitas crianças pequenas, de três ou quatro anos, era um pouco difícil de acompanhar, a não ser que o enredo fosse expressivamente linear. Partimos, então, para uma tentativa de espetáculos menos preocupados com enredo seguido e que desse à criança a oportunidade de ouvir música; quase um concerto recreativo e muito pouco severo e entrosado com um estímulo visual.”

“O resultado de Concerto para os Mais Pequenos não foi bem o que nós havíamos imaginado. Acontecia uma coisa estranhíssima que eu nunca havia visto antes em teatro infantil: as crianças ficavam numa concentração enorme, quietas, paradas, numa atitude quase mística, quase religiosa. Algumas crianças chegavam a ver o espetáculo cinco vezes, sempre nessa mesma atitude de identificação estática. Entretanto, a parte de aula prática de musica, a parte pedagógica, era muito bem assimilada: as crianças interessavam-se pelos instrumentos e ouviam com atenção as músicas apresentadas – músicas folclóricas e da Renascença – mesmo nos momentos em que essas musicas foram executadas sem imagens. Também a história que baseamos em dois romances antigos e que fizemos questão de tornar a mais rudimentar possível , perecia passar sem dificuldades, deixando-nos a impressão de que a dosagem dos diferentes elementos havia resultado satisfatória.”

E o espetáculo atual, Musicas do Mar, em que se assemelha e em que se difere da experiência do Concerto para os Mais Pequenos?

A parte abertamente pedagógica é aqui mais reduzida e se restringe a uma ênfase maior no repertório musical na boa receptividade do espetáculo anterior. Os arranjos são mais elaborados, o repertório é novo, e a execução musical é melhor. Há também uma tentativa nova na estrutura da história, que se desenrola em três planos diferentes. A criança percebe cristalinamente essa construção. A atitude dos espectadores é desta vez menos passiva, há mais participação da plateia. Mas um aspecto de Músicas do Mar que me parece dos mais importantes é a desmistificação do boneco, do manipulador e do instrumento musical. Inclusive depois da estreia reensaiamos o espetáculo e ampliamos essa parte, pois achamos que é uma convenção boa para a criança que se inicia no teatro, perceber, com clareza a participação de gente que movimenta os bonecos, sentir que as coisa é de mentirinha e faz de conta que qualquer um pode fazer teatro, pode mexer os bonecos, pode usar sua fantasia para criar uma história, pode tocar um instrumento. Aliás, há muito tempo que sonhamos em fazer – e espero que façamos um dia – um espetáculo completamente aberto à vista, como os japoneses fazem nos seus kabuki e bunraku. Se a coisa é boa para os japoneses, porque não seria boa para nós?”

Mas não há perigo de que a ilusão seja quebrada de maneira completa de mais? Que a criança deixe simplesmente de acreditar naquilo que está vendo e se desinteresse da ação?

“Isso pode ser uma desvantagem para quem esteja querendo fazer passar uma história; mas ao mesmo tempo é uma vantagem fazer com que a criança não se entregue demais aos acontecimentos, evitar que haja aquilo que costuma acontecer nas tradicionais canas de esconde-esconde, quando a criança acaba se transformando num pequeno delator. Isso pode ser válido, pode ser agradável para a criança e principalmente para quem está fazendo o espetáculo, mas acho que se conseguirmos da criança uma atitude diferente, se fizermos com que ela perceba que a coisa é tão mágica assim e que há gente como a gente criando todo esse trabalho, será muito melhor.”

“Conseguimos certas coisas que me pareceram muito positivas neste sentido da desmistificação do boneco. Por exemplo, numa cena em que um personagem boneco desmaia e cai no palco para a plateia, sempre pudemos continuar a representação imediatamente, porque as crianças espontaneamente pegam o boneco do chão e devolvem para o palco com a maior naturalidade, percebendo que este é apenas um objeto necessário para a continuação do espetáculo.”

E qual é a possibilidade de canalizar essas experiências para um espetáculo de bonecos destinado a adultos?

“Estamos planejando a montagem de um espetáculo para adultos, composto de dois ou três entremezes de Cervantes: O Retábulo das Maravilhas, A cova de Salamanca, e talvez um outro. Este seria um espetáculo que daria margem a um jogo de grande intensidade entre ator e talvez alguns personagens não seriam bonecos e sim atores vivos, dando prosseguimento á pesquisa que fizemos com Gianni Ratto em Ubu Rei. Este dificilmente seria um espetáculo comercial, seria uma coisa que faríamos para nossa própria satisfação dos personagens e das possibilidades de um grupo que vem fazendo teatro de bonecos já há 10 anos e que hoje em dia conseguiu constituir uma verdadeira equipe, na qual há vários elementos excelentes, com autêntica vocação e autêntico espírito de fantocheiro.”