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A diversidade de nomenclaturas existentes para definir quem é o profissional que se expressa com a linguagem do teatro de formas animadas, evidencia que essa é uma tarefa complexa. Historicamente, “titeriteiro” e “marionetista” sempre foram as expressões mais utilizadas. Porém, em janeiro de 1979, na cidade de Ouro Preto, durante o Congresso da Associação Brasileira de Teatro de Bonecos – ABTB, os artistas presentes ao evento decidiram que “bonequeiro” era a palavra que melhor definia este profissional. Naquela época, o teatro de bonecos produzido pelos grupos no Brasil já fazia rupturas estéticas visíveis em relação ao teatro de bonecos tradicional, o nosso “mamulengo”, e com o teatro produzido em escolas bastante conhecido como “teatro de fantoches”. E “bonequeiro” passou a ser a nomenclatura corrente. Mas este consenso não durou muito. Logo, apareceram outros nomes com a justificativa de que “bonequeiro” é expressão mais adequada para quem trabalha com boneco do tipo antropomorfo e, por isso, não aglutina outras importantes tendências mais contemporâneas desta linguagem.

Posteriormente, a denominação mais aceita foi “manipulador”, porque creditava a este artista a responsabilidade da encenação. No entanto, muitos profissionais da área passaram a considerá-la inadequada porque pressupõe uma relação verticalizada do ator sobre o boneco ou objeto. Esta visão não contempla um aspecto fundamental no trabalho deste artista, o diálogo entre a matéria de que é feito o títere, os mecanismos de articulação e manipulação, assim como as intenções do manipulador. Ou seja, a relação que se estabelece entre o artista que se expressa com bonecos e objetos ou formas animadas é mais complexa do que a palavra “manipulador” confere. Certamente por isso, mais recentemente é frequente o uso de nomenclaturas como “ator-manipulador”, “ator-bonequeiro”, “ator-animador”. São duas as novidades postas nessas expressões: a primeira é a idéia de “animar” o objeto inanimado, a idéia de dar vida a algo; e a segunda diz respeito à presença do bonequeiro como ator, como compositor da cena. É neste momento que se configura, de modo mais visível, a concepção de que este artista é ator, é intérprete.

A apresentação destas nomenclaturas não encerra as dúvidas que pairam sobre a denominação mais adequada sobre o trabalho deste profissional. Por isso o trocadilho usado pelo mamulengueiro Chico Daniel (1), da cidade de Natal, ilustra bem a discussão:

Bonequeiro: conheço, quem é?

Com a brincadeira, nosso mestre mamulengueiro reafirma que trata-se de um profissional conhecido, mas as dúvidas sobre quem é o artista bonequeiro permanecem.

O intento por desfazê-las pode principiar identificando-o pelo que faz. Mas obstáculos já surgem aí, uma vez que é um profissional que faz um pouco de tudo. O mais simples seria iniciar dizendo que o ator-animador é um artista que encena espetáculos, expressando-se com bonecos. E na realização desse trabalho, normalmente, concebe o texto, ou seja, é dramaturgo; confecciona os bonecos, os objetos, o que lhe exige competências para esculpir, pintar, costurar e, assim, é escultor, pintor e figurinista; concebe e executa o cenário, e materiais de cena… é cenógrafo e aderecista; seleciona a trilha sonora e, às vezes, compõe músicas para o espetáculo… é músico; interpreta, utilizando bonecos e objetos para representar e, atualmente, é comum extrapolar os limites da “tenda ou palquinho” tradicional dos bonecos e atua numa relação direta com o público, ou seja, é ator; dirige o próprio espetáculo, é diretor; concebe a iluminação para o espetáculo, é iluminador; levanta os recursos financeiros e condições materiais para a realização do trabalho, além de divulgar e vender o espetáculo, é produtor; define o material gráfico, tais como programa e cartaz, assim, também é artista gráfico.

A polivalência desse artista faz lembrar o ator italiano do final da Idade Média e princípio do Renascimento, o vagabondo, que fazia de tudo um pouco, ou muito de tudo, desde magia, dança, prestidigitação, contava histórias, propunha jogos de azar, vendia produtos miraculosos e… fazia teatro.(2)

Como se vê, trabalhar com teatro de animação é atividade que envolve o conhecimento das práticas de outras profissões. A realidade concreta de muitos profissionais brasileiros que atuam com esta arte exige, no exercício da profissão, o domínio de conhecimentos próprios de outros campos. Exige a realização de tarefas que, mesmo não tendo formação na área, os atores-animadores precisam executar.

O tema da formação profissional do ator-animador vem, há anos, despertando o interesse de profissionais envolvidos com esta arte. Em setembro de 1990, realizou-se em Londres o “Simpósio Internacional sobre a Formação de Dedicação Plena para Marionetistas.”(3) O evento foi realizado no Teatro Lilian Baylis e reuniu professores e diretores das escolas de teatro de marionetes da Europa, com o objetivo de discutir “a necessidade de formação académica plena para profissionais de teatro de marionetes.” Na verdade, autoridades inglesas se mobilizavam para criar o bacharelado nessa área, junto à Escola Central de Fala e Drama, o que acabou ocorrendo em 1993. A apresentação de trechos, a seguir, das palestras dos convidados ao Simpósio é enriquecedora por revelar divergências e pontos comuns em torno do tema, notadamente em relação à visão do que seja a arte do teatro de animação e do profissional ator-animador.

Para John Blundall, “o teatro de animação é um teatro sintético que combina uma grande variedade de formas de expressão. Nenhuma arte pode estar ilhada das demais e muito menos a arte do teatro de animação” (Blundall, apud Simpósio. 1990:21). A afirmação do diretor artístico do Cannon Hill de Birmingham, Inglaterra, é importante na medida em que destaca a característica de aglutinar, de sintetizar diversas formas de expressão criadora integrando a arte do teatro de animação e nela interagindo.”(…) não estar ilhado das demais artes” não significa, porém, que o bonequeiro deva concentrar em si o domínio de tantas áreas do conhecimento. A polivalência do bonequeiro, característica singular desse profissional, pouco comum em outras profissões pode, ao mesmo tempo, estar permeada de problemas, uma vez que dificilmente alguém consegue ter domínio completo sobre tantas áreas simultaneamente.

Henryk Jurkowski prefere focar a discussão no questionamento sobre as diferenças e similitudes entre o trabalho do ator e do marionetista, afirmando:

A questão que se coloca é se existem diferenças entre um ator -manipulador e um ator. Alguns partem do princípio de que tudo é teatro, tanto o teatro de animação como o teatro de atores são, na sua essência, teatro. Outros defendem que o teatro de animação e o teatro de atores são disciplinas distintas. Tenho me perguntado se os dois podem ser chamados de intérpretes ? Para mim o ator, no palco, se transforma na personagem. Já o bonequeiro, no palco, concentra toda a sua força criativa em fazer do boneco a personagem. O intérprete faz uso de diferentes recursos para contar uma história (Jurkowski, apud Simpósio, 1990:17).

A tentativa do Professor do Departamento de Direção Teatral da Escola de Teatro de Bonecos da Academia Teatral de Varsóvia, sugerindo diferenças entre ator e intérprete, colabora pouco na identificação de diferenças entre o trabalho do ator e do bonequeiro. Pelo visto, existem peculiaridades na Polónia, país de Jurkowski, onde ator é diferente de intérprete. No contexto brasileiro, as expressões se equivalem. No entanto, o professor aponta uma característica fundamental no trabalho do bonequeiro quando diz que “o ator se transforma na personagem. Já o bonequeiro concentra sua força criativa em fazer do boneco a personagem no palco.” Há, dessa maneira, o deslocamento do centro da atenção para o objeto. Nessa diferença está, certamente, uma das características marcantes do trabalho do profissional de teatro de animação.

Essa posição é reafirmada por Caroline Astell-Burt, professora na Escola Politécnica de Middlesex, Inglaterra: “Estou segura de que não é necessário convencer alguém de que as técnicas do teatro de animação são únicas, são específicas. O que não significa que tais técnicas não sejam comuns a outras formas de arte. Defino o marionetista como o artista que trabalha essencialmente através de objetos para se comunicar” (Astell-Burt, apud Simpósio, 1990:30). Assim, vai despontando como consenso a idéia de bonequeiro como ator que se expressa “animando” objetos; fazendo com que o centro da representação não esteja no seu corpo como intérprete, e sim, no objeto. Esta singularidade é fundamentai para a compreensão desta arte.

É importante, ainda, destacar as reflexões de Nina Dimitrova, do Instituto Estatal de Teatro de Sofia, Bulgária, porque propõe a formação diferenciada para o marionetista, evidenciando que os processos de criação são distintos dos do trabalho do ator. A professora afirma:

O processo de criação no teatro de animação é diferente do processo de criação no “teatro de atores. “No teatro de animação existe um sujeito e um objeto no processo de criação: o ator é o sujeito e o boneco é o objeto. No entanto, o ator de teatro é, normalmente, sujeito e objeto do seu próprio ato de criação. No teatro de bonecos, o ator vive com o boneco, o que não acontece noutras formas de expressão cénica. Por isso, o teatro de animação exige um tipo de formação distinta da formação destinada aos que querem trabalhar como atores (Dimitrova, apud Simpósio, 1990:10).

A presença do objeto na cena como protagonista da ação é a razão da diferença apontada pela professora. Mas, ao dar ênfase à necessidade de uma formação específica, Dimitrova deixa de explicitar a importância de o ator-marionetista conhecer e se preparar como ator. Fica a impressão de que o trabalho do ator não faz parte da formação do ator-marionetista e este me parece um aspecto essencial ao seu trabalho.

A posição defendida por Margareta Niculescu, da Escola Superior da Marionete na França, reúne elementos que, ao mesmo tempo em que destaca particularidades, inclui este profissional na arte do teatro. O trecho da sua palestra é revelador:

Poderíamos definir o marionetista como o artista que cria formas, formas no espaço, pequenas ou grandes, bi ou tridimensionás com diferentes tipos de material. Isto o converte num artista plástico que deveria se formar numa escola de Belas Artes? O marionetista também é um artista que dá vida a objetos através de movimentos e da energia do seu próprio corpo. E precisa de uma grande destreza física e imaginação para traduzir os movimentos do seu corpo em movimentos do boneco. O marionetista seria, assim, mais coreógrafo? Mas também cria situações dramáticas, o que talvez o aproxime mais do ator. Ou quem sabe o marionetista seja alguém que sabe fazer tudo! Talvez, Deus tenha dotado um grupo de indivíduos de todos os talentos necessários e são só estes indivíduos que podem chegara ser marioneUstas! Creio que o marionetista é, essencialmente, umapessoa de teatro, um artista intérprete (Niculescu, apud Simpósio, 1990:7).

Deixando de lado a ironia explicitada no pensamento da diretora romena, sobretudo quando se refere aos múltiplos talentos do bonequeiro, cabe ressaltar que Niculescu aponta para a necessidade de que tem o profissional de teatro de animação de dominar, sim, uma multiplicidade de conhecimentos fundamentais para a realização do espetáculo, mas chama a atenção para seu trabalho de intérprete, destacando a importância do domínio do espaço e da expressividade do corpo.

As opiniões dos cinco professores referidos, com experiências distintas e provenientes de diferentes realidades, apresentam, em comum, a necessidade de ver o teatro de animação como expressão cênica, ou seja, o teatro de bonecos precisa ser compreendido antes de tudo como teatro. No entanto, trata-se de uma arte que reúne e sintetiza elementos de outros campos artísticos, notadamente das artes visuais, exigindo do profissional que atue com essa expressão, conhecimentos próprios dessa área. Ao acordarem que o ator-animador é interprete, evidenciam a necessidade de uma formação que contemple saberes próprios da profissão de ator. E desse modo fica explícito que nem todo ator é marionetista, mas todo marionetista é ator. O ator não precisa dominar as particularidades que caracterizam o teatro de formas animadas, mas o ator-animador não pode dispensar os saberes próprios da arte do ator.

O que caracteriza a arte do teatro de formas animadas é a presença do objeto/boneco interposto entre o ator-animador e o público; a relação ou comunicação do ator-animador com a platéia é mediada pela presença do objeto. Nas múltiplas formas de animar a marionete, a presença do ator-animador definindo, escolhendo e selecionando os gestos e ações do boneco é imprescindível. Por isso é ator, mas um ator que, para o exercício da profissão, precisa dominar saberes que são próprios da arte do teatro de formas animadas.

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Notas

(1) O mamulengueiro Chico Daniel a utiliza com frequência em cena. Um boneco pergunta: Voce conhece fulano de tal? E o outro responde: Conheço, quem é?
(2) A noção de ator “vagabondo” é apresentada pela professora Beti Rabetti, no artigo: “Grupos Trupes & Companhia: momentos emblemáticos da história do teatro.” In revista Urdimento N.1, 1997
(3) O Simpósio foi patrocinado pela Fundação Calouste Gulbenkian e British Council e reuniu conferencistas do Reino Unido, França, Espanha,.Roménia, Polónia e Bulgária. As citações são extraídas do relatório disponível nos arquivos da FCK – (1990:1-51)

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Bibliografia

BELTRAME, Valmor. Animar o Inanimado: a formação profissional no teatro de bonecos. Tese defendida na ECA-USP, São Paulo: 2001
RABETTI, Beti, Grupos Trupes &Companhia: momentos emblemáticos da história do teatro. In Revista Urdimento N.1, Florianópolis: UDESC, 1997
SIMPÓSIO Internacional sobre Ia Formación de Dedicación Plena de los Títeres. Londres: Calouste Gulbenkian, Britsh Conceil, Teatro Lilian Baylis, 1990

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Valmor Beltrame – Níni
Professor de Teatro no Curso de Artes Cénicas e no Mestrado em Teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004 e 2005)