Crítica publicada no Correio da Manhã, Coluna Teatro
Por Agnello Macedo – Rio de Janeiro – 19.09.1950

Barra de Divisão - 45 cm

Lucia Benedetti faz gente grande acreditar em fadas

Havia centenas de crianças no Teatro Copacabana, domingo pela manhã. Crianças cuidadas. Crianças felizes. Crianças que podem ter um prazer diferente a juntar-se a alegria que é inata na gente miúda. Pais, governantas, babás levaram pelas mãozinhas grupos de carinhas muito bonitas e risonhas para ver como seria Branca de Neve que Lucia Benedetti escreveu e o Teatro Monteiro Lobato montou.

Guardávamos ainda uma vivíssima impressão da pré-estreia de, A Menina das Nuvens que foi um lindo espetáculo até para gente grande. Bonito de cenários, de roupas, de interpretação. Texto rico de beleza e simplicidade, como devem ser as coisas feitas para crianças.

Estava cheio o Teatro Copacabana quando a vovozinha foi sentar-se numa poltrona estofada coberta de um tecido estampado. Estava tão bem vestida a velhinha, que tivemos pena de que em vez daquela poltrona não estivesse ali uma dessas cadeiras de balanço com assento tecido de palhinha e com um trabalho de bilro ou de crivo no espaldar. Estaria mais de acordo com a figura.

Lucia Benedetti já nos havia dito, em começos de maio, que pretendia fazer uma Branca de Neve diferente de tudo que havia por aí. E fez mesmo, sua peça é o que de mais original já se fez dentro daquela história que até as pessoas muito velhinhas conhecem.

Montava – a escritora que já nos deu elementos para que a possamos apontar como a maior autora de peças para crianças – o que havia de mais belo em Branca de Neve, conservou tudo quanto era bondade e conseguiu – o que lhe passa a valer os mais altos encômios – dar um desfecho muito mais lógico muito, mais humano, muito mais de acordo com a alma das crianças. A Rainha, que na história tanto tem de bela quanto de má, teve, na atriz Mara Rubia, uma grande intérprete, só que continuou linda para deixar de ser má.

No último ato, quando Branca de Neve está morta rodeada pelos anões, pela Aia, pelo Espelho Mágico, por Botabaixo, quando o príncipe chega e pergunta se alguém saberia, um meio de se poder salvar a princesa, um menino gritou da plateia: – “Dê um beijo nela que sara.”

Pinga Pinga, o chefe dos anões protestou.”Nada de beijo, isso era de uma outra história”.
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Botabaixo, que tinha ido em busca de um feiticeiro que morava no alto de um coqueiro, que ficava no alto de um rochedo, que ficava no alto de uma montanha, que ficava no alto de um planalto descobriu o meio de salvar Branca de Neve. Era preciso encontrar-se o coração da Rainha, que um feiticeiro lhe havia roubado. Era essa a razão daquela maldade, a pobre da Rainha não tinha culpa de ser má, haviam feito com ela o mesmo que ela fizera com Botabaixo, que também não tinha coração.

Deu certo, a mágica ensinada pelo feiticeiro e a Rainha ficou dona de tanta bondade quanto era a sua beleza. Salvou Branca de Neve, fê-la casar com o príncipe, perdoou a Aia e Botabaixo. Ficou boazinha mesmo por inteiro.

Lucia Benedetti fez mais do que a obra de adaptação. Ela corrigiu o que havia de antipedagógico em Branca de Neve, mostrando-nos que é possível dar noção mais exata do bem fazendo-o triunfar sobre o mal do que castigando a maldade.

Vale reproduzirmos um trecho da crônica que publicamos a três de maio último, sobre “Teatro para Crianças”. Dizíamos, a certa altura: – A escritora Lucia Benedetti contou-nos, acidentalmente, que sua próxima peça é Branca de Neve. Mas vai ser uma Branca de Neve diferente, com anõezinhos autênticos de feições harmoniosas, o espelho será uma figura viva, a Princesa fugirá ao tipo apresentado nas edições ilustradas e nos desenhos animados.

Mais do que uma adaptação entrevemos, no trabalho de Lucia Benedetti, obra de criação.

Como as crianças não podem ir sozinhas a teatros, haverá certamente, dois tipos de reação a essa experiência, a delas e a dos que se habituaram de longo tempo às figuras que Lucia Benedetti vai apresentar de modo diferente.

Resolvida que está a não transigir, firmemente decidida a não fazer concessões, a autora de O Casaco Encantado, revela uma segurança que só pode ter por base o principio da honestidade profissional. Será uma experiência o que vai fazer essa escritora provadamente experimentada? Não é o que nos parece. Vemos no que decidiu realizar Lucia Benedetti, uma corajosa afirmação de personalidade.

Tudo aconteceu assim, exceção feita aos seis anõezinhos, que se não o eram autênticos, tinham feições harmoniosas. Não é fácil descobrir sete anões como Arnaldo Rio, que foi o único autentico e fez – o Pinga Pinga. Foi um grande anão.

A Sra. Ester Leão, que tem muito gosto e senso de direção muito apurado, só errou, a nosso ver, quando no quadro – da Casa dos Anõezinhos, que – teve um tratamento de pantomima, fez anões pisarem duro, tornando muito barulhenta a cena que deveria ter primado pela leveza. No mais só merece louvores.

Nilson Penna, que foi o responsável pelos figurinos e cenários, deve estar muito contente com o que sucedeu quando se abriu a cena da Casa dos Anões, foram para ele certamente, aqueles aplausos da criançada, que se entusiasmou pela beleza do cenário. Muito felizes as roupas e os cenários.

Que pena não termos ouvido a música que Waldemar Henrique devia ter feito para Branca de Neve. Os fundos musicais, quando especialmente compostos, sempre resultam mais agradáveis. A sonoplastia está a pedir sons mais suaves. Há momentos de distorção que precisam ser evitados.

Mara Rubia fez uma Rainha de encantar todo mundo. Habituados que estamos a vê-Ia no Teatro de Revista sempre cantando ou dizendo coisas brejeiras, gostamos muito da surpresa que ela nos deu como Rainha. Muito elegante muito bem vestida. Muito senhora de si.

Dary Reis no espelho mágico veio confirmar nossa opinião a seu respeito. Quando analisamos sua atuação na estréia de Os Aprendizes, atuação essa que nos pareceu deficientíssima, lembramos a diferença daquilo com o seu papel em O Casaco Encantado. Pois Dary Reis fez um espelho como melhor se poderia fazer. As qualidades que lhe faltam para galã de comédia, sobram-lhe para fazer” Teatro Infantil”, e é o que ele deve continuar fazendo, porque o faz bem.

Nicete Bruno em Branca de Neve conseguiu nos indispor com os seus os seus cabelos loiros. O papel exigia uma cabeleira negra e Nicete Bruno ganhou tanto deixando de ser loira que aqui estamos a lhe pedir, em benefício dela mesma, que escureça outra vez os cabelos.

Só em Branca de Neve descobrimos o que há de estranho na figura de Nicete, e são mesmo os cabelos loiros, que não devem ser loiros. Fez uma Branca de Neve humilde, boazinha e ingênua como a Branca de Neve deve ser mesmo.

José Valuzzi no escravo Botabaixo, teve comportamento uniforme. Deu boa interpretação ao texto que lhe foi confiado usando bem a voz e movimentando-se com a presença indicada.

Laís Peres é sempre a figura que a gente lembra logo quando ouve falar numa peça que leva uma aia. Ela não gosta disso, disse – nos muitas vezes que gostaria de fazer outros papéis. Mas não pode, e não poderá nunca, por culpa própria, porque ninguém os faria melhor do que ela os faz.

Foi assim em Branca de Neve. Como tia e como bruxa quando ela fez a “doublé” de Mara Rubia para ir envenenar a princesa.

E por falar nisso, que razão poderosa estará influindo para que a Rainha não use o travesti de bruxa nessa cena? Daria mais realidade à história se Mara aparecesse também como bruxa.

Jardel Filho, no príncipe, deu uma figura muito simpática e soube conquistar a criançada. Quando pulou corda, então, entusiasmou a gurizada.

Lá atrás dos bastidores, houve um bolo de velinhas para José Jansen que estava de aniversário e fez a maquilagem de todos. Trabalhou bem o José Jansen que merece duplas felicitações: pelo aniversário e pelo seu trabalho artístico.

Diante do que foi esse espetáculo reforça-se o nosso ponto de vista em relação à oportunidade de o Serviço Nacional de Teatro patrocinar exibições de peças como A Menina das Nuvens e Branca de Neve para apresentações gratuitas a crianças que não podem pagar os teatros. Pense o nosso caro amigo Dr. Thiers na maneira mágica de descobrir uma verbazinha suplementar. Converse com o ministro Pedro Calmon a respeito. Não será preciso fazer ginásticas imensas para descobrir o de como dar as outras crianças uma alegria em tudo igual a que experimentaram centenas de crianças no Teatro Copacabana, domingo pela manhã. Crianças que são menos cuidadas. Crianças que são menos felizes. Crianças que de ordinário só tem essa alegria que é inata na gente miúda. Irão com os pais, sem governantas e sem babas, encher com suas carinhas que também são bonitas, os teatros que o C. N. T. lhes quiser dar para que possam ver as peças que Lúcia Benedetti escreveu com as mãos de artista e alma de fada.