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(…) Léon Chancerel aprendia junto a Copeau, na Borgonha, os segredos do jogo, e se imbuía das ideias mais caras ao autor de A Casa Natal: necessidade de uma escola de atores, retorno às leis essenciais do teatro, cultura moral do autor, modéstia perante a obra, sinceridade, etc. Desse contato nascem Lês Comédiens Routiers (Os Atores Itinerantes).
Marcel Raymond.

Este artigo pretende traçar um breve percurso desse homem de teatro francês, que dedicou, que dedicou a vida a questões teóricas e práticas de formação e transmissão no campo teatral.

Tendo trabalhado ao lado de Jacques Copeau (1879 – 1949), um dos reformadores do teatro no século XX, León Chancerel (1886 -1965) preocupou-se com a renovação da arte teatral através da formação da juventude, já no final da sua vida, fundou e presidiu a ASSITEJ – Associação dos Amigos do Teatro para a Infância e para a Juventude, nascida do amor e da revolta contra tudo o que é feio, medíocre, vulgar, ofensivo para a infância e para a adolescência (…) em suma: tudo o que carece de sentido humano, de honestidade operaria e de saber (1).

Na verdade, Leon Chancerel se interessou pelo teatro desde a infância: primeiro como espectador vendo espetáculos nos jardins de seu avô materno, em Gonesse, nos arredores de Paris; depois como animador teatral, pois em 1918 confeccionou um teatro de fantoches para o Natal da Vitória, e apresentou para os amigos A Verdadeira História de Chapeuzinho Vermelho, drama histórico em 4 atos e um prólogo, na qual desempenhava todos os papéis masculinos. Já na época revelava possuir familiaridade com os temas que preocupavam os homens de teatro mais exigentes da sua época, e desejava uma renovação profunda de uma arte que não deveria ser apenas “uma empresa literária, o desejo de ganhar dinheiro e de obter sucesso” (2). Perguntava então para si mesmo “Quem nos dará espetáculos em que haverá lirismo, observação, grande arrebatamentos (…)?” (3).

Esse tipo de interrogação encontrou resposta durante os seus diálogos com Jacques Copeau, que ele encontrará pela primeira vez, aos trinta e quatro anos, em 19 de junho de 1920, no seu camarote do Títere du Veloz Colombier. Em seu diário, anotou “É o único teatro de paris a que se pode levar a sua alma sem que ela tenha vergonha de estar lá.” (4). Recebeu então a revelação da possibilidade de concretizar teatralmente certas ideias que o ocupavam, a confirmação de sua pertinência. Copeau lhe atribuiu um papel de secretário, de dramaturgo de “duplo “. Apesar de a colaboração entre ambos não ter sido totalmente pacífica” a estética dramática de Copeau difere muito da minha” (5). Inicialmente o Vieux-Colombier representou para Chancerel um espaço de experimentação da escrita de pequenas obras representadas antes de certos espetáculos clássicos, à guisa de prólogos. Além de Copeau, que o influenciou decisivamente, Chancerel encontrou Constantin Stanislavski (1863-1938) em Paris (dele traduziu Minha Vida na Arte), e colaborou com Charles Dullin (1885-1949). Concebendo um projeto com jovens da Resistência Social de Levallois-Perret, nas cercanias de Paris, desde 1922 percebeu nos jovens a possibilidade de encontrar um terreno de pesquisa sobre o trabalho do autor e sobre a renovação do teatro. Antes de criar a sua própria companhia teatral, Chancerel permaneceu por alguns anos em contato muito estreito com Jacques Copeau, e com esse teatro que possuía uma escola, cuja abertura, no outono de 1920, ele presenciou, sendo testemunha imediata de uma pesquisa sobre a formação metódica do ator.

A Escola do Vieux-Colombier era concebida como um fator decisivo para a reforma teatral. Nela, o corpo não deveria ser utilizado somente para representar outro corpo humano, mas caberia ao aluno descobrir as suas possibilidades de expressar formas da natureza (árvores, plantas, etc,) e outras formas plásticas (pontes, igrejas, etc.). Portanto, a arte não era concebida nem praticada como um complemento da expressão da voz. Influenciado por essas ideias e práticas, Chancerel escreveria mais tarde: “Antes de tudo, o teatro é ação e movimento. Nunca partir, no início, de um texto, mas de um sentimento, de uma situação, de um ato, apelando para a palavra apenas depois de ter assegurado a sintaxe corporal. A literatura é uma arte: o teatro, outra.” (6) A realização do trabalho residiria na união, cuja imagem é o Coro, formado por uma companhia ideal de atores na qual, como numa orquestra, cada um desejaria apresentar a sua parte do melhor modo que pudesse, dentro de um conjunto. Em vez de tolher, as regras do ofício trariam um meio de expressão indispensável, seriam como o cinzel que dá brilho e força ao mármore. “Não existe arte sem ofício. Aprende primeiro o ofício. Desde o começo. Aceita as restrições da arte. (…) Quanto mais ela estiver sujeita a restrições materiais, mais terá espiritualidade.” (7)

Podemos considerar dois momentos de convívio mais intimo de Chancerel com Copeau. O primeiro em Paris, no Theatre du Vieux Colombier. O segundo, na Borgonha quando “põe a mão na massa”: treina fabrica acessórios, faz improvisações, esboça o seu Oncle Sebastien (Tio Sebastião). O mergulho na Borgonha completa o batismo de Chancerel nas águas lustrais do teatro. Os seus meses borgonheses ocupam um lugar nuclear para a sua pratica como autor dramático, ator-encenador, historiador do teatro. (8)

Ao longo de seus pronunciamentos, varias vezes Chancerel definiu a sua companhia teatral, Les Comediens Routiers (1929-1939), como “o encontro de uma doutrina dramática com uma doutrina de vida, dentro de uma comunidade com a sua Ordem e a sua Lei” (9); O encontro de um homem de teatro com jovens que, desejando tornar o teatro um serviço nobre e necessário possuíam a mesma formação espiritual e física, dentro do movimento escoteiro católico denominado Scouts de Francês (S.D.F.), preocupado com a formação do espírito e do caráter (observação, imaginação, reflexão, descoberta, invenção, etc.), com a formação profissional (criar o habito de fazer tudo a fundo), com a formação social (aprender a receber os serviços da sociedade, mas também aprender a devolver e a dar, a olhar para fora de si).

Em 1929, Chancerel começa com paciência a construir o seu trabalho de formação e de representação teatrais junto da juventude, reunindo-se regularmente com os Scouts de France interessados pela arte dramática. Quer abrir o caminho para a renovação do teatro. Começa a experimentar, na prática, certos princípios: supressão do cenário pintado; adoção de figurinos simples e vivos; uso da máscara, busca de um estilo esportivo, com ritmo rápido, claro e preciso; luta contra o cabotinismo; exaltação dos sentimentos comunitários; preparação lenta e firme dos participantes, sem visar a apresentar imediatamente um espetáculo; combate ao exibicionismo. Como o ator e o operário do teatro, deve ser formado para a sua tarefa com o sentimento de servir e de se dedicar. Precisa criar o seu instrumento, preparar o corpo, a voz, a imaginação, o espírito. Os espetáculos virão como consequência.

Para, isso, a partir de um roteiro simples, esquemático, cada um deve inventar a sua personagem, e experimenta-Ia em muitas situações, confrontando-a com as de outras personagens. Desse modo o ator é também autor, poeta.

Desde o início essa equipe sabia o que almejava alcançar: adquirir uma técnica sólida; constituir um instrumento dramático vigoroso e flexível; descobrir e instaurar pouco a pouco uma forma teatral jovem e viva, coletiva; constituir um material cênico transportável; representar nos bairros, na periferia, no interior do país, nos hospitais, nas cidades e nos campos; reagir contra o individualismo, contra o esnobismo, contra a cabotinagem e contra o dilentatismo; fazer um teatro afinado com as necessidades da “alma popular”.

Os Comediens Routiers possuíam uma sede, o Centro Dramático, que tinha por atribuições duas atividades conexas, dois grandes serviços: um organismo permanente de estudos e de pesquisas (informação, ensino e estudos, observação direta das atividades, troca epistolar); equipes de criação e de representação. O organismo de Estudos e Pesquisas compreendia um lugar especializado (com estúdio, oficinas, escritório); uma equipe de jovens instrutores formados pelo Centro (sob a orientação de Chancerel e, de 1932 a 1935, de Jean Dasté); cursos teóricos e práticos abertos aos grupos de juventude e a comunidade em geral, “não como uma preparação a pratica profissional do teatro, mas como um meio de aperfeiçoamento espiritual e físico, pessoal e comunitário, e como um complemento de cultura” (10); publicações relativas à arte dramática, em suas relações com as atividades do Centro e com o espírito que as anima. Já as Criações e Representações constituíam uma atividade mantida pelos Comédiens Routiers, cujo repertório era formado por espetáculos sacros, intermédios e jogos dramáticos improvisados.

A partir de janeiro de 1935, esse trabalho de renovação teatral abriu outro campo de batalha: com o propósito de encenar obras de qualidade para essa faixa etária, o Teatro do Tio Sebastião começou a apresentar espetáculos para a infância e a juventude, inspirados no joga de improviso (ma non tropppo…) da Commedia dell’ Arte.

A atividade do Centro de Representações pode então se manifestar, primeiramente, pela montagem de um ou dois grandes espetáculos (celebrações ligadas à liturgia católica), com a participação dos instrutores e dos alunos do Centro; em segundo lugar, pela colaboração na preparação e na representação de espetáculos escoteiros; em terceiro lugar, pelo ensino dos Coros Dramáticos e de equipes de representações como a dos Comediens Routiers, na região parisiense e em outras regiões; em quarto lugar, suscitando criação de companhias de marionetistas; em quinto lugar, apresentando regularmente espetáculos destinados a infância; em sexto lugar, apresentando espetáculos ao ar livre (Theatre des Quatre-Vents / Teatro dos Quatro Ventos).

A vasta e variada atividade de Leon Chancerel desencadeou, portanto, um movimento de renovação do teatro e de interesse por ele em atividades da infância e da juventude, seja na escola, seja em comunidades, contribuindo para descentralizar a sua pratica e para aumentar a sua qualidade. Sua influencia foi sentida em muitos países do mundo. No Brasil, as atividades de Maria Clara Machado e d’ O Tablado fizeram eco, na segunda metade do século XX, a esse trabalho iniciado nos primórdios do século XX e instaurado por Leon Chancerel a partir de 1929.

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Notas

(1) Leon Chancerel, in Association des Amis du Theâtre Pour L’Enfance et la Jeunesse
(2) Léon Chancerel. Journal (Diário). 16 de março de 1920 (inédito)
(3) Id.ib., 13 de março de 1920
(4) Id.,ib.
(5) Id.,ib. 26 de junho de 1921
(6) Id. “Courrier” (Correio), 216. Bulletin des Comediens Routier (Boletim dos Atores Itinerantes), 2(11), nov. 1933, p.213-219
(7) Id.”Feuilles de Route” (2), item nº20, p.26. Bulletin des Comediens Routiers d’lle-de-france (Boletim dos Atores Itinerantes da Ilha-da-França). 1(1), dec.1932
(8) Le Journal de Bord des Copiaus; 1924-1929 (O Diário de Bordo dos Copiaus; 1924-1929). Edition commentée par Denis Gontard. Paris: Seghers, 1974
(9) Léon Chancerel, “Feuilles de Route” (2), não assinado, item nº (10) Op. Cit.,p.13ª

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José Ronaldo Faleiro
Professor-pesquisador no Departamento de Artes Cênicas do Centro de Artes da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 10º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2006)