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Via de regra educadores, artistas e arte-educadores tomam algumas bases comuns nas diferentes ações que exercem, tendo em vista a educação da criança. Nestas bases, aspectos “desumanizantes’ da estrutura social construídos nas representações sociais desde a modernidade refletem – se na produção cultural para a criança e em sua relação com a produção cultural da criança.

Para colocar a criança em cena no ato educativo, necessitamos rever criticamente a ideia de infância sob a qual nos orientamos. Inicialmente tomemos como pressuposto que a infância não é uma só, ou seja, as crianças não vivem a infância de forma homogênea ou uniforme em nenhum dos seus aspectos: econômico, social, cultural, lúdico, alimentar, etc. Se podemos concordar que o que identifica a criança é o fato de constituir-se num ser humano de pouca idade, podemos também afirmar que a forma como ela vive este momento será determinada por condições sociais, por tempos e espaços sociais próprios de cada contexto.

A infância como categoria social não é única e estável, sofre permanente mudança relacionada à inserção concreta da criança no meio social. Este processo resulta em permanentes transformações também no âmbito conceitual e das ideias que a sociedade constrói acerca da responsabilidade sobre a construção dos novos sujeitos.

As rupturas ocorridas nas estruturas sociais e familiares, que tiveram como marco a sociedade moderna, resultaram na privatização do espaço familiar que passa a ser organizado em torno da criança. No entanto, a responsabilidade da família pela proteção, educação e socialização da criança, sofreu novas transformações a partir do desenvolvimento do modelo urbano-industrial que teve como consequência uma perpetuação das desigualdades sociais e da própria constituição da infância.

O chamado prolongamento do tempo de infância, concebido como um período em que a criança é preservada do mundo do trabalho, é acompanhado de um maior reconhecimento social da criança e uma maior atenção à infância, mas não de uma garantia do direito à infância. Uma sociedade de extremas diferenças resulta no convívio com diferentes infâncias: Vividas por crianças que têm um pleno reconhecimento dos seus direitos e por aquelas que não têm nenhum destes mesmos direitos garantidos.

A delimitação da infância tem se dado predominantemente por um recorte etário definido por oposição ao adulto, pela falta de idade, pela imaturidade ou pela inadequada integração social. Esta visão será contestada principalmente no final deste século quando se delineia um conceito de infância, arrendatário de um novo tempo que passa a considerar as diferentes formas de inserção da criança na realidade, no mundo adulto, nas atividades cotidianas, nas brincadeiras e nas diferentes formas de manifestação cultural. Porém, como veremos, a infância permanece no horizonte, como depositária das esperanças da sociedade futura, de uma forma ou de outra, pela preservação e pela disciplinação.

Tradicionalmente quando pensamos uma ação ou um projeto cultural para as crianças, como novos integrantes de uma cultura, expressamos uma concepção guiada pela ideia da infantilidade como um ideal de pureza, ingenuidade, romantismo, imaturidade, inexperiência, etc. Vivemos a ambiguidade de uma ideia de natureza infantil única e o anseio de controlá-la, de ensiná-la o certo e o errado, o bem e o mal, enfim, de enquadrá-la num universo sociocultural já constituído.

A pedagogia é um exemplo disto, tem oscilado permanentemente entre o romantismo de uma educação pautada no “desabrochar” de uma formação humana conduzida pela natureza, e por outro lado uma educação pautada na disciplinação e na conformação às regras e aos modos sociais dominantes.

Ao mesmo tempo em que obviedade de que a infância não é única, esbarra cotidianamente na nossa frente num mundo onde convivemos com a exploração do trabalho infantil, com a exacerbação do consumo infantil e com crianças excluídas de todas as suas possibilidades de sobrevivência, reconhecemos, como diria o educador francês Celestin Freinet, que o ser humano de pouca idade expressa virtualidades humanas tais com a criação, a invenção, o envolvimento, a liberdade e a cooperação, que possibilitam a construção de algo novo. Fiquemos atentos, pois se identificamos a criança como aquela à qual falta a razão e a experiência, e não pela afirmação de suas especificidades, a criança passa a ser vista como aquela que deve ser completamente guiada pelo adulto. Se a criança deixa de ser vista como um ser social em desenvolvimento que resulta das relações sociais que estabelece, desconsideramos as desigualdades sociais e temos como conseqüência sua própria ratificação. A situação social da infância tem mantido contornos extremos, o mito da infância feliz convive com a violência, o abandono, etc., que desvelam um outro lado do mundo infantil sonhado pela humanidade, transformando-o na “caricatura perversa do próprio mundo adulto”. (Calligaris, p.6-4)

A infância reinante nos estratos sociais médios, a qual se permitiu estender o tempo da infância protegida das preocupações, tem também hoje sua extensão cada vez mais encurtada, com uma vida organizada basicamente em função das expectativas e pretensões dos adultos. A criança volta a ser vista como o “adulto em miniatura”.

Mesmo tendo conquistado um espaço social particular no mundo social, a criança torna-se depositária de nossas projeções. Cabe então perguntarmos: qual o espaço que lhe resta de participação, onde ela poderá preservar-se com liberdade e independência em suas realizações?

Projetando na criança nossos anseios adultos, nos mantemos ambivalentes nos projetos educativos e culturais que propomos, calcando-os algumas vezes na preservação de uma infância idealizada e noutras, no enquadramento em um mundo adulto já constituído.

Na sociedade centrada no adulto, a criança é promessa e potencialidade, uma condição a ser ultrapassada, e o adulto (educador) se relaciona, portanto, com um futuro adulto e não com uma criança concreta. A infância idealizada pelo adulto chega a corresponder a uma mitificação, como bem aponta Chombart de Lauwe (1971):

(…) Através da mitificação existe uma reivindicação fundamental para si, uma forma de escapar ao tempo e a opressão dos papéis impostos pela sociedade, como também uma recusa do mundo tal como é vivido pelo adulto , em função de estruturas sociais, de instituições, de normas, sem nenhuma ponte em comum com mundo desejado e projetado na infância. ( op.cit. apud ROSEMBERG, 1976, p. 1467)

No mundo moderno, a inocência infantil (vista como um momento de preservação) e a violência contra a criança (como reflexo de uma extrema imposição), convivem no mesmo espaço. O “direito” de compartilhar do mundo adulto representa de fato a própria ausência de direitos da criança, sobretudo da criança pobre. Com as crianças que têm sua infância furtada por condições de existência adversas ao mundo infantil do exercício do sonho e da liberdade, a sociedade compartilha as mazelas do capitalismo voraz: a miséria, a criminalidade e, na “melhor das hipóteses”, a conformadora inserção no mundo do trabalho.

A crítica à universalidade da infância, enraizada pela pedagogia, vai ser mais recentemente apontada por aqueles que enfatizaram e reconheceram a sua heterogeneidade. A incorporação deste mesmo conceito de “infância heterogênea” decorre no reconhecimento da criança como sujeito de direitos, dentre eles o fundamental direito à participação.

E finalmente, se constatamos que a criança é autônoma e produz culturas diversas, reconheceremos que conhecemos muito pouco sobre estas culturas infantis e que precisamos tomar como ponto de partida de nossas ações a observação das crianças: o como brincam e sobre o que brincam; o cruzamento feliz que estabelecem entre fantasia e realidade; as expressões de seu imaginário e o como interpretam temas da vida cotidiana.

Este novo momento nos exige consciência sobre a necessidade de espaços culturais que contemplem todas as dimensões do humano, sem esquecer que toda produção cultural como intervenção educativa precisa ser mantida sob estreita vigilância para evitar a exacerbação do poder controlador em detrimento do exercício pleno das capacidades humanas, sobretudo a criação, dando espaço para a plenitude das possibilidades de convívio entre adultos e crianças, e entre crianças sem separações etárias; de aventuras e de descoberta do mundo; de movimento e de livre expressão; de brincar e de repetir a brincadeira e da experiência estética e de ação criativa.

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Bibliografia

ARIÈS, Philippe. A História Social da infância e da família, R. J, Zahar, 1979
CALLIGARIS, Contardo. “O reino encantado chega ao fim”, Folha de São Paulo, 24/7/94, p 4-6 [Caderno MAIS]
CHARLOT, Bernard. A mistificação pedagógica, , R.J. ,ZAHAR, 1979
NARODOWSKI, Mariano. Infancia y poder. La conformación de la pedagogia moderna. Buenos Aires, AIQUE, 1994
ROSEMBERG, Fúlvia. “Educação: para quem?” Ciência e Cultura, S.P: 28 (12), dezembro, p. 1467, 1976

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Eloisa Acires Candal Rocha 
Professora Doutora do Centro de Educação Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa de 0 a 6 anos e do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFSC

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 5º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2001)