Crítica publicada no Diário de Notícias
Por R. Magalhães Junior – Rio de Janeiro – 19.10.1948

A Festa das Crianças 

Um dos espetáculos mais singulares e mais comoventes que já testemunhei nestes últimos tempos foi a bela festa infantil de domingo último no Teatro Ginástico, quando aos meninos de triste Rio de Janeiro, intoxicados pela vulgaridade das histórias de quadrinhos, uma grande atriz, chamada Henriette Morineau, e uma grande trupe de profissionais de cena, apresentaram a peça O Casaco Encantado, da escritora Lúcia Benedetti, brasileira de Mococa, apesar do nome italiano. O Entusiasmo das crianças, o impulso irresistível que as levou a subir ao palco, a se aproximar dos personagens, a vê-los de perto, falar-lhes, a tocar-lhes nas roupas, a pedir-lhes autógrafos, era um espontâneo e caloroso testemunho de gratidão aos que estão procurando oferece recreação adequada e de cunho eminentemente artístico a abandonada criança brasileira.

Não falarei aqui da peça, nem de sua autora. Mas poderei falar da grande revelação que foi a direção acertada, segura, magnífica, desse jovem e talentoso ator que é Graça Melo, agora pela primeira vez às voltas com o métier de Reinhardt, de Piscator, de Bragaglia e Copeau. A confiança de Henriette Morineau elevou-o a essa posição e o jovem artista soube honrá-la, vencendo uma prova difícil. O afinamento do seu conjunto, a graça dos seus atores todos eles colocados no plano da plateia infantil, sujeitando-se a novos processos de interpretação, tudo isso obedeceu a intuição e aos conselhos de uma experiência que os estudos têm ajudado a aprimorar. Outra revelação digna de nota foi a do cenógrafo, figurinista e também intérprete, Nilson Pena, nas duas primeiras capacidades, que representam também primícias nesse campo em que tão poucos valores possuímos.

Ver uma atriz como Henriette Morineau montada numa vassoura, vestida de bruxa; ver um ator como Ambrósio Fregolente vestido de sapo; ver atores como Graça Melo, Jaci Campos, Flora May, Dari Reis, Marta Castro, Orlando Guy e outros, cooperando num empreendimento destinado a divertir de maneira sã a criança brasileira, eis um espetáculo realmente estimulante, confortador, digno de ser encorajado. A nossa criança vive desprezada. As grandes cidades não têm parques. Não têm play grounds. Os meninos não se divertem senão no perigoso bate bola das ruas, ou nos cinemas pulguentos e mal arejados, vendo filmes em séries que são os sucedâneos cinematográficos das histórias de quadrinhos. Comemora-se a Semana da Criança, como ainda agora, mas a penas com a boa vontade das noticias e gravuras dos jornais. Em, favor delas, quase nada se faz de prático. Quero dizer: faz-se sim. Faz-se, mas só em favor das crianças doentes, das crianças anormais, das crianças desajustadas. Em favor das sadias, nada. Por tudo isso, é quase de estarrecer que surja uma iniciativa como essa de Henriette Morineau e de seus empresários, lançando ­no Brasil, pela primeira vez, o verdadeiro teatro infantil, – que é o teatro feito para crianças por atores adultos.

O interesse, o entusiasmo com que as crianças saudaram essa iniciativa constituíram desde logo uma base de sucesso absoluto ao redor da mesma. Este apressado registro se destina a festejar essa vitória das crianças brasileiras. Só por esse presente dado às nossas crianças, – pela grande trágica que virou bruxa desastrada, quebrando a vassoura voadora, – Henriette Morineau mereceria receber uma das Insígnias da Ordem do Cruzeiro. Porque ela vai levar a São Paulo, a Santos, a Campinas, e pelo Brasil afora, o seu Teatro para Crianças, e outros com certeza hão de imita-la no que de mais acertado se fez ultimamente em nossa cena: trabalhar para a conquista de novas plateias, indo arrebata-las ainda virgens ao cinema.