Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind, Rio de Janeiro, 20.08.1982

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As Fadas que Tinham Chapéus

Ao convidar Fernanda Lopez de Almeida para fazer a adaptação teatral de A Fada que Tinha Ideias, Elvira Rocha, a produtora do espetáculo, pareceu endossar uma das afirmações da Fada-Mãe, personagem do livro de Fernanda. Depois de inúmeras mágicas cheias de estranhos resultados, realizadas pela fadinha Clara-Luz, diz, a certa altura, sua mãe, avisando que não vai mais corrigir ou modificar os truques da filha: “Pois só quem fez a invenção manda na coisa inventada”.

Foi pensando assim certamente que Elvira chamou a autora do texto literário para torna-lo um texto teatral. A rigor, muitos ingredientes já se encontravam prontos no livro. Personagens definidas e bem construídas, ação constante e sempre centrada num personagem-criança, empatia com o público infantil. E, ao contrário das inúmeras adaptações feitas sem nenhum critério que invadiram o teatro infantil carioca nestes últimos tempos, A Fada que Tinha Ideias, talvez uma das mais belas obras de nossa literatura infantil contemporânea, recebe de sua autora uma bela versão teatral.

É estranho, no entanto, que, mesmo com uma bela adaptação, uma produção cuidadíssima e uma direção competente, o espetáculo, para quem o assistiu no último sábado, não funcionasse de modo satisfatório. Tinha tudo para funcionar e não funcionou. O que houve, então? Uma coisa saltaria aos olhos, mesmo do espectador mais distraído: a total falta de sintonia entre cenários e figurinos. Coisa desculpável, talvez, se os autores não fossem Lídia Kosovski e Sérgio Silveira. Com um currículo invejável no teatro infantil e responsáveis pelos belíssimos figurinos de A Loja das Maravilhas Naturais, desta vez chegaram ao cúmulo de fazer chapéus renascentistas tão altos para as fadas que elas nem cabem dentro de suas casinhas. Eram para funcionar como vizinhas-fofoqueiras, meio fadas, meio “tias de Maria Clara Machado”, mas mal dá para ouvir suas vozes e elas nem podem debruçar direito na janela. Apenas Bia Montez, uma das fadas-vizinhas, mostrou malícia suficiente para dar um nó no terrível chapéu e chegar mais perto de sua Janelinha. Ora, essa falta de sintonia entre cenário e figurino das fadas chega a atravancar o andamento do espetáculo, já que as vizinhas funcionam como uma espécie de coro que comenta as travessuras da fadinha Clara-Luz. Sem que possam ouvir suas falas, os espectadores que não conhecem a história ficam perdidos e o interesse pelo que se passa em cena tem mesmo que cair muito.

O que parece mexer mesmo com o espectador é a excelente interpretação de Alice Viveiros de Castro como Clara-Luz. Uma excelente movimentação, uma enorme facilidade de comunicação com a plateia e a elaboração de um personagem infantil sem usar cacoetes e trejeitos caricaturais. Ótimos, também, os desempenhos de Eduardo Wotzig como o menino-relâmpago, Suzana Kruger como como a gota d’água e Bia Montez como uma das vizinhas. A lamentar, no entanto, que nem Elvira Rocha, nem o seu figurino revelem com clareza as potencialidades críticas de uma personagem como a Rainha das Fadas. O figurino mais parece de uma Rainha das Bruxas e Elvira, sem se decidir entre uma interpretação autoritária ou apenas mal-humorada, deixa sua Rainha sem pé nem cabeça. A ponto de o tom das respostas da fadinha Clara-Luz e de sua mãe e professora às perguntas da Rainha ficar meio sem sentido. Seria preciso que a Rainha das Fadas estivesse contracenando com elas, para que o tom da cena final ao menos se unificasse. O que, infelizmente, não acontece.

Há, entretanto, alguns belos momentos no espetáculo. Como a entrada em cena do menino-relâmpago que vira cometa. Uma entrada que funciona como uma espécie de citação a uma antiga montagem do Tablado de A Menina e o Vento, onde subitamente uma das tias surgia em cena deslizando de patins. Quem desliza agora é o relâmpago-cometa, mas a sedução da plateia é idêntica. Há alguns ótimos momentos de diálogo entre as vizinhas, sobretudo quando resolvem imitar as filhas. A súbita entrada em cena da Sra. Relâmpaga em busca do filho é igualmente ótima. Assim como quase todas as cenas de brincadeiras de Clara-Luz. O que, em meio aos desastrosos figurinos e cenários, consegue tecer um belo espetáculo infantil, sem dúvida com o melhor texto dentre os que estão atualmente em cartaz.