Crítica publicada em O Globo
Por Clovis Levi – Rio de Janeiro – 09.04.1977

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A Estória das Cebolas: Lúdica e livre

Era uma vez um mundo onde as pessoas comiam-se umas as outras, pois cada um pensava que seu semelhante fosse uma vaca. Hoje, entretanto, ninguém acha que seu vizinho seja da família dos bovinos. Mas, nem por isso, paramos de comer uns aos outros.

A estória do homem que procura fazer com que termine essa comilança foi adaptada do folclore coreano por Rachel Ribas – que faz sua estreia na direção assinando o espetáculo juntamente com Marcos Caetano Ribas. O Grupo Contadores de Estórias, com a montagem de A Estória das Cebolas prossegue em sua linha de encenar peças a partir dos contos de tradição oral. Entretanto, quais as razões que justificam a escolha deste texto? A Estória das Cebolas reúne o mágico e o trágico, o cômico e a critica, a busca e a possibilidade de derrota. Esses me parecem os elementos fundamentais desta estória ao mesmo tempo tão absurda e tão lúcida. Ou será que está distante de nossa realidade uma situação como essa: “até que o homem chegou num lugar onde ninguém pensava que o outro era vaca, num lugar onde ninguém comia ninguém. Eram todos cegos”

O espetáculo persegue o clima de festa tão bem trabalhado na Fabulosa Estória de Melão City – a encenação anterior do grupo. Para isso, utiliza-se dos espaços abertos dos parques, das cores dos figurinos, das tiras de panos, da bandinha, dos bonecos gigantes e simpáticos da movimentação da plateia, dos aparecimentos – surpresa (e vale destacar, neste particular, o surgimento do dragão – tão mágico e, ao mesmo tempo, tão ás claras, sendo permitido a todas as crianças ver como se faz a fumaça que sai de suas ventas; e vale destacar, também, a maravilhosa sacação que é o conjunto do “povo da cidade”).

Vi o espetáculo quando de sua terceira apresentação e parece que a relação cena-espaço-plateia ainda está sendo descoberta. Havia uma certa dureza no movimento, existia ainda um certo ar de coisa ensaiada, sem o grande trunfo do espetáculo ao ar livre que é o de passar para a plateia um alto grau de espontaneidade, de brincadeira, de festa. O que influencia esta mesma plateia a se comportar também como numa festa: brincando espontaneamente. No parque Guinle o público esteve duro, rígido, imóvel – quase como num teatro. Isso, entretanto, deverá ir desaparecendo á medida em que direção e atores forem dominando mais a linguagem da encenação.

O defeito principal de A Estória das Cebolas, entretanto é outro. E, se não chega a comprometer o espetáculo, consegue torná-lo um pouco menos rico. Ele se situa na opção feita pela adaptação e direção no que diz respeito à ação. Em A Estória das Cebolas a ação não tem vida e expressividade próprias; ela é uma ilustração – muito bonita, diga-se de passagem – de tudo aquilo que já foi contado pelo narrador. A ação não traz uma informação nova ao público. Ela apenas repete o que já foi contado. Quem leva o espetáculo nas suas fases de desenvolvimento é o narrador; o resto do elenco tem apenas uma ação decorativa e redundante. Parece-me que seria muito mais expressivo se A Estória das Cebolas fosse verdadeiramente encenada pelo grupo, ao invés de ser narrada ilustrativamente. Essa última, sem dúvida, é uma linguagem mais pobre. Entretanto a direção tenta compensar essa pobreza – e, em grande parte, consegue – através de todos aqueles elementos citados acima: uso do espaço, bonecos gigantes, bandinhas etc. E, além do mais, conta com um elenco seguro e que consegue manter, a todo instante, o tom lúdico proposto pela encenação. Marcos e Rachel Ribas, Cláudia Ribeiro, Mauro Cesar, Hamilda, Valéria Moreira, João Gomes Rego e Dilsa Montoro certamente deslancharão totalmente daqui a mais algumas apresentações. A bandinha (Carlos Watkins, José Jofre, Marcos André, Helena Lúcia e Ignês Bernardes) também cumpre com charme sua função e é pena que, desta vez, ela tenha ficado tão presa ao tablado, sem dar ao público o prazer de ver os músicos inicialmente espalhados pelo parque, como em Melão City.

A Estória das Cebolas é um espetáculo muito bonito, solto e inteligente e que deve ser visto tanto pelos filhos como pelos pais. Como as apresentações são ao ar livre (numa promoção digna de aplausos do Departamento de Parques), é preciso olhar o Rio-Show para saber onde e quando haverá espetáculo. E, é claro, torcer para que não chova.