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Às vezes a voz dela me fazia dormir; (…) mas na maior parte do tempo eu simplesmente gozava a sensação voluptuosa de ser levado pelas palavras e sentia, num sentido muito físico, que estava de fato viajando por algum lugar maravilhosamente longínquo, um lugar que eu dificilmente arriscava espiar na última e secreta página do livro.

Assim Alberto Manguei (1997, p. 132), descreve a experiência de ouvir histórias contadas por sua babá em dias e noites de asma. Alguns, como Fernando Peixoto (1980.p.5), lembram da mesma forma as histórias ouvidas em torno do rádio: “O rádio era um instrumento mágico que nos transportava para um universo de fuga e fantasia”.

Compartilho, aqui, a experiência e reflexão que tenho feito a respeito do rádio, como um veículo expressivo. E também sobre a escuta. A ideia de parar para ouvir. E ouvir como possibilidade de imaginar.

Cheguei na questão da escuta através da fala, da voz de atriz. Isto aconteceu porque, como atriz, me senti tocada, me vi apaixonada pela possibilidade de trabalhar com o rádio, de tornar minhas vozes e palavras que, à frente do microfone, se transformam em imagens e gestos.

Venho trabalhando com rádio há 15 anos. Dentro do Departamento de Arte Dramática, onde sou professora, comecei a desenvolver uma pesquisa ligada ao trabalho do ator feito para o rádio. À medida que nossa ação foi se fazendo, o grupo foi percebendo que precisávamos recriar um espaço de radiodrama que não havia mais. O Rio Grande do Sul foi um pólo importantíssimo de produção de radioteatro, de radionovela e de radiodrama, mas como em todos os lugares do Brasil e em toda a América Latina, com o surgimento da televisão, esse gênero migrou para a televisão, esvaziando o rádio nesse sentido.

Hoje, muitos anos depois, o Núcleo de peças radiofônicas e Grupo Cuidado que Mancha, podem orgulhosamente dizer que além das publicações e dos espetáculos realizados (1), têm dois programas na Rádio FM Cultura de Porto Alegre. Um programa feito para crianças, um dos poucos programas desse gênero no Brasil, que é produzido pelo Cuidado que Mancha, o programa Ouvindo Coisas. E o programa Radioteatro, feito pelo Núcleo de peças radiofônicas de Porto Alegre.

Nosso trabalho é marcado pela busca de uma expressão radiofônica contemporânea, uma linguagem que faça sentido hoje, abrindo espaço para a escuta ainda que num mundo coberto de imagens.

Trata-se de pensar em outras imagens, imagens nem sempre visuais, provocações que a escuta traz para a nossa imaginação.

Em especial no trabalho feito para crianças, temos tido uma excelente resposta. O discurso de que as crianças não têm tempo, de que elas não aceitam alguma coisa com o ritmo um pouco mais lento, de que elas também precisam da profusão de imagens, do exagero da ação, esse discurso, se desfaz na profunda atenção, no interesse que as crianças mostram por uma boa história. E mais ainda, se esta história vier acompanhada de sons, vozes e músicas. Ou se a elas for oferecida a oportunidade de criar e produzir sons, vozes, silêncios.

Walter Benjamin tem um trabalho importante a respeito do rádio e ele associa a ideia do ouvir, do falar, da oralidade, de estar em torno de alguém que conta e que fala, com a possibilidade que o rádio tem de fazer isso coletivamente e de forma muito mais ampla. Ele próprio, Walter Benjamin, escreveu para o rádio e, mais interessante ainda, foi locutor de rádio e foi radioator também. Isto, por volta de 1930, ou seja, numa época em que o rádio estava nascendo e já então se reconhecia a capacidade do veículo de falar às pessoas, a muitas pessoas e a cada uma.

Pela experiência acústica o indivíduo constrói imagens que nascem do seu repertório pessoal. Cada ouvinte imagina personagens, ambientes e situações a partir da escuta das palavras, dos sons, das vozes, enfim do modo como o ouvir lhe toca.

Esse repertório pessoal se constitui tanto daquilo que é único e singular como também do que é coletivo. O imaginário, a memória coletiva. “A memória é a mais épica de todas as faculdades”, lembra Benjamin (1994, p.210).

A escuta repercute no espaço, embora o som atue no tempo. Basicamente, ele se apropria do espaço, na medida em que o momento da escuta é um momento de familiaridade, é um momento que para Barthes (1990, p.218 e 219), a escuta é a referência da familiaridade, é a referência dos sons primeiros, é a referência da casa, do território, é o que demarca os espaços em que a gente existe, em que a gente convive com as pessoas.

A peça radiofônica constitui uma experiência pedagógica coletiva, criativa e que abre a atores e ouvintes, quem diz e quem escuta, a possibilidade da imaginação criadora e reinvenção da memória, conectando-se ao imaginário coletivo e à imaginação de cada um. Uma pedagogia da imaginação. “A ficção, a imaginação daquilo que ainda não é, mas poderia ser, consiste, pois, numa das mais eficazes ferramentas de que dispõe a humanidade para a criação do saber” (DUARTE Jr., 2001, p.135).

O exercício da oralidade e da escuta deve estar na experiência da criança. No teatro, no rádio ou na sala de aula. Seja na forma de leituras em voz alta, contação de histórias ou como práticas radiofônicas, todas elas experiências que propiciam a imaginação. Ao falar, ouvir, produzir sonoplastia com os mais diferentes objetos, a criança exercita sua observação sonora e revitaliza seu repertório acústico.

As incontáveis combinações que sons e silêncio, voz e efeitos sonoros podem produzir fazem com que o ouvinte, ao refazê-las na sua experiência, produza uma obra única.

A voz valoriza a palavra, as pausas, o silêncio e a intensidade. Preenche o texto com a ação sonora. Ao mesmo tempo, encontra o ritmo da fala e dos silêncios. Silêncio que não é um acaso, mas uma escolha, uma pausa, a respiração necessária.

Na peça radiofônica a imagem é construída pela voz em relação ao tempo. Tempo que reconstrói espaços e novos tempos. Na experiência acústica, o tempo do diálogo ator-ouvinte é um tempo de fantasia. Um tempo que permite a criação de espaços auditivos, imaginários e emocionais.
Como espaço privilegiado para a imaginação, o rádio e a peça radiofônica podem significar uma experiência de estar no mundo poeticamente.

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Notas

(1) CD para crianças, Ouvindo Coisas; Espetáculo adulto Programa de Família; Livro Bem Lembrado, Histórias do  radioteatro em Porto Alegre; Espetáculo/livro/CD para crianças, A Família Sujo; Espetáculo/livro/CD para crianças, O Natal de Natanael.

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Bibliografia

BAJARD, Elie. Ler e dizer. São Paulo: Cortez, 1994
BARTHES, Roland. A escuta. In: O óbvio e o obtuso: ensaios críticos III. Rio de Janeiro. Nova Fronteira, 1990. BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas – Magia e Técnica, Arte e Política. Vol 1. São Paulo: Brasiliense, 1994
DUARTE Jr., João Francisco. O sentido dos sentidos. A educação do sensível. Curitiba: Criar, 2001. MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,1997
PEIXOTO, Fernando. Descobrindo o que já estava descoberto, in: SPERBER, George Bernard. Introdução à Peça Radiofônica. São Paulo: Editora Pedagógica e Universitária, 1980

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Mima Spritzer
Atriz. Professora e pesquisadora no Departamento de Arte Dramática, Instituto de Artes, UFRGS. Mestre e Doutoranda em Educação no PPGEDU/UFRGS. Coordenadora do Núcleo de peças radiofônicas de Porto Alegre. Membro do GEARTE, Grupo de pesquisas em Educação e Arte.

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 8º e 9º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004 e 2005).