cbtij-entrevista-lucia-coelho

Lúcia Coelho

Barra

Esta entrevista fez parte do Seminário Permanente de Teatro para Infância e Juventude, realizada no Teatro Ziembinski, em 28 de Outubro de 1997.

Barra

Dudu Sandroni
Vamos bater um papo hoje com a Lúcia Coelho, provavelmente uma das pessoas mais ativas e mais importantes no cenário do teatro infanto-juvenil. Primeiro, por causa do Grupo Navegando, que está fazendo 20 anos em 97, e, também, pelo trabalho especial que ela vem desenvolvendo no Centro Cultural Gama Filho. Então, vamos à célebre pergunta: como tudo começou? (risos)

Lúcia Coelho
Como tudo começou? É engraçado porque processo é uma coisa que a gente não sabe explicar. É difícil explicar como começou meu interesse por teatro, porque foi tudo por acaso. Eu dei essa sorte na vida, porque a coisa que eu mais gosto de fazer é teatro. Dei sorte, realmente, porque antes eu trabalhava e não gostava do que fazia. Eu era professora de uma escola maravilhosa, o Bennett, uma escola-modelo, com umas pessoas especiais. Era uma família. E eu estava ali por conta daquela “família”, mas não gostava das coisas que eu fazia e pensava: para que eu sirvo?

Dudu
Professora de quê, Lúcia? De artes?

Lúcia
Eu era professora de artes, mas dentro de um espírito que eu não curtia muito. A aula de artes era obrigatória e com imposições. O diretor determinava o programa. Me dava uma tristeza danada mas eu ficava ali porque precisava trabalhar, aquelas coisas. Pensava que seria bom se eu casasse, pois aí não precisaria mais trabalhar – era o sonho da minha época: um marido pra sustentar você. (risos) Também queria manter o emprego porque o Bennett, na ocasião, tinha alojamento e os professores podiam morar na escola – casa, comida e roupa lavada. Era uma maravilha. Aí, um belo dia, a Dona Heloísa Marinho – uma pessoa maravilhosa que dava aula de teatro de bonecos – ia se aposentar e eu ainda não era contratada. Trabalhava, mas não tinha contrato. Uma amiga, professora de artes, sabia que eu estava infeliz e disse que havia me recomendado para a diretora como especialista em teatro de bonecos – logo eu, que nunca tinha visto teatro de bonecos na vida! A amiga prometeu me ensinar o que sabia, e ela sabia muito, eu achei aquilo tudo uma loucura. Mas, morrendo de medo, aceitei o desafio. Estudei com ela e tempos depois comecei a dar minhas primeiras aulas. Ela me ensinou uma receita, como receita de bolo, para fazer bonecos. No meio desse sofrimento todo, chegaram da Argentina o Ilo Krugli e o Pedro Dominguez – isso tem uns 36 anos – e me convidaram para fazer o curso deles. Ótimo. Fiz o curso, continuei dando aulas e fui aprendendo. E aí foi uma paixão daquelas, arrebatadoras. Fazia tudo em teatro de bonecos, todos os trabalhos da escola viravam bonecos. Foram experiências maravilhosas que ficaram pra sempre. A minha escola foi essa. Eu aprendia com as crianças e as crianças aprendiam comigo. Havia uma troca muito grande. E a magia da educação está na troca e na constante busca conjunta do descobrir através das experiências vividas. Comecei a achar que eu servia para aquilo – “eu gosto disso”, pensava. Quando conseguimos acabar com a obrigatoriedade das aulas de artes, de teatro, partimos para uma experiência diferente. Fundamos no Bennett um teatro amador, o TAB – acho que em 1967. E aí comecei com um grupo de alunos, de nove, dez anos de idade, que optou por fazer teatro e começamos do desconhecido. Levantávamos os interesses do grupo, iniciávamos com textos conhecidos e, depois, partíamos para textos criados pelos próprios alunos, que era o que nós mais gostávamos de fazer. Como era matéria opcional, eles podiam continuar no ano seguinte. Esses meninos foram ficando, passaram do primeiro para o segundo grau e, quando eles estavam terminando o segundo grau e iam embora, eu resolvi ir com eles. Deixei a escola. Eu tinha 20 anos de trabalho lá, mas não aguentei ficar. O grupo tinha ficado nove anos junto. Com esse grupo, fundei o Navegando. Assim nasceu a história do Navegando. Todos eles eram alunos meus.

Dudu
Quem fazia parte desse grupo?

Lúcia
Meus alunos: Andréa Dantas, Cica Modesta, Daniel Dantas, Celinéia Paradela, Celina Lira, Fábio Pillar, Fernanda Coelho, Karen Accioly, Vera Lúcia Ribeiro, Bia Lessa (no espetáculo Cara ou Coroa). Outros alunos como Fábio Junqueira e Maria Cristina Gatti tiveram outras participações. Foram professores de teatro no Nau, escola que fundei em 1976. Caíque Botkay, parceiro em muitos textos do Navegando, é responsável pela música de todos os espetáculos, se integrou no grupo desde sempre. Além dele, outros músicos nos acompanharam como Charles Khan e o Mauro Perelman. Tem histórias interessantes: na época do Colégio ainda, quando tudo virava boneco, montamos um espetáculo sobre a abolição da escravatura, Cica fez as caravelas para os escravos navegarem. Já fazia cenografia e não sabia. Hoje é uma das cenógrafas mais premiadas do país. Daniel amava o palco, liderava o grupo que escrevia os textos, mas viver o que inventava era o seu forte. Aprendemos todos juntos. Fizemos de um espaço-escola, um campo fértil de pesquisa cercado de muito amor.

Dudu
Por que você saiu da escola depois de 20 anos de trabalho? O grupo exigia que você se dedicasse exclusivamente a ele, não era compatível com a atividade na escola?

Lúcia
Era uma questão de amor total. Só isso. Não queria pegar outro grupo porque poderia gostar dele. Além disso, o grupo original queria continuar, não queria parar ali. Por causa disso, fundamos o Navegando. Foi nesse período que eu criei o Núcleo de Arte da Urca, NAU. E aí a coisa foi. De repente, a gente estava trabalhando. Como tudo na minha vida, aconteceu bem sem querer. O próprio Navegando não se propunha a ser um grupo de teatro profissional. Nós queríamos montar um espetáculo. Foi quando nasceu o Tá na Hora. “Então, vamos continuar com essa pesquisa de boneco de animação?” “Vamos.” Quando estávamos ensaiando o espetáculo, a Magda Modesto, mãe da Cica, perguntou se não queríamos participar de um festival em Petrópolis, um festival de bonecos. Claro que queríamos. Mas nem a peça nem o grupo tinham nome. Precisávamos inventar alguma coisa de repente. Como já tinha NAU, podia ser alguma coisa com mar. Aí saiu o Navegando. E o espetáculo era um teatro de bonecos, circo, e o nome ficou Tá na Hora, Tá na Hora. Foi assim que o Navegando nasceu.

Dudu
Lúcia, voltando um pouco. Esse contato com o Ilo só se deu nesse curso ou você chegou a trabalhar com ele em algum espetáculo?

Lúcia
Trabalhei com ele.

Dudu
Como foi? Tenho muita curiosidade, porque me parece que o Ilo estabelece uma ruptura na linguagem que influencia toda uma geração. Onde se cristaliza isso? O que aconteceu com a chegada do Ilo ao Brasil? O que ele revelou de tão importante que mexeu com tantas cabeças?

Lúcia
Na realidade, os grandes mestres foram Ilo e Pedro. Como já contei, eles foram meus primeiros mestres, trouxeram uma linguagem de animação inovadora. Com eles aprendi o que sei sobre bonecos. Se eles mexeram com a minha cabeça? Mudaram minha vida.

Dudu
Você não ia a teatro de bonecos, a teatro infantil?

Lúcia
O primeiro teatro de bonecos que vi na vida foi o do Ilo e do Pedro.

Dudu
E aí você trabalhou com eles…

Lúcia
Fiz o primeiro curso, depois tive vontade de fazer o segundo e todos os outros cursos da Escolinha de Arte do Brasil. Fui fazendo. Eles começaram a montar uma série de espetáculos e eu fui montando com eles – o Barquinho, que o Ilo remontou há pouco tempo, foi um deles. Depois, o trabalho no Bennett me envolveu muito e me dediquei a ele. Não senti essa revolução da linguagem porque, até eles aparecerem, eu não conhecia nenhuma linguagem teatral de animação. A pesquisa veio depois, já com o Navegando. Me apaixonei por teatro de boneco. Num primeiro momento, eu queria que o boneco fosse integrado ao ator – a gente queria experimentar isso. O boneco atrás da caixinha nós não curtíamos tanto. Essa mistura de gente com boneco era mais atraente. Escrevíamos o texto no período de ensaios. Não tinha essa coisa de “o que vamos fazer primeiro?” A gente ia experimentando, vivendo o processo.

Maria Helena Kühner
Partindo de personagens?

Lúcia Às vezes, partindo de personagens, outras, de uma situação que um de nós contava uma coisa engraçada. Um dos espetáculos nasceu de um desenho, outro, de uma experiência de vida. Todas as histórias do Navegando foram assim. Nada era pensado com antecedência, planejado. Eu me lembro que, quando a gente fez o Tá na hora, não tinha ninguém pra ver, não tinha crítico. Depois do festival de Petrópolis, o Caíque Botkay sugeriu que a gente tentasse entrar numa concorrência para ocupar o Teatro Cacilda Becker. Quando eu vi, já era, já fazia teatro profissional. Tudo na minha vida foi um acidente. Sempre acidentes maravilhosos…

Dudu
Ganharam a concorrência?

Lúcia
Ganhamos.

Da plateia
Como o Caíque chegou a você?

Lúcia Ah, o Caíque já é outra história. Ele não foi meu aluno, ele é muito velhinho pra ter sido meu aluno.

Dudu
Mas ele conta, “fui aluno da Lúcia, fui aluno da Lúcia”… (risos.)

Lúcia
Ele costuma dizer que foi, mas eu desminto. Mentira dele. A gente se conheceu num grupo de análise há uns 20 e tantos anos. Ele fazia música pra teatro, eu fazia teatro e a aproximação foi natural. Ficamos muito amigos, irmãos, parceiros.

Dudu
A NAU era uma escola de arte tipo Escolinha de Arte do Brasil? Fala um pouco sobre a NAU.

Lúcia
Minha mãe tinha uma casa vazia na Urca e, quando eu saí do Bennett, pintou a ideia de fazer ali, naquele espaço, uma escola de artes. Afinal, nós tínhamos que ter um espaço para montar os espetáculos. Abrimos um curso de teatro para crianças, um curso de férias, e lotou. As mães ficaram entusiasmadas e começaram a pedir para abrirmos ali uma pré-escola. No começo, eu reagi (o meu negócio era teatro e não pedagogia), mas as professoras do curso de férias adoraram a ideia. Então, montamos a escolinha, ela foi crescendo, e nós ficamos com pouco espaço para desenvolver os trabalhos de arte porque a casa era pequena. A escola tomou conta de tudo e eu fiquei só com o Navegando.

Da plateia
Quanto tempo durou a NAU, a escola?

Lúcia
Ela existe até hoje e é administrada por uma pedagoga.

Dudu 
Navegando ficou na casa da Urca por quanto tempo?

Lúcia
Nós ficamos lá uns seis ou sete anos. Saímos quando a equipe precisou transformar nosso ateliê em mais uma sala de aula. E lá fui eu embora com meu grupo… Logo depois, teve a concorrência para que grupos de teatro – um infantil e um adulto ocupassem o Teatro Villa-Lobos. Entramos na concorrência junto com o Despertar, do Paulo Reis, e ganhamos. Eu tinha de novo um espaço para trabalhar e foi uma experiência engraçadíssima. Nós ficamos quase dois anos no Villa-Lobos, mas nesse período, tínhamos que ter uma estreia a cada seis meses. Uma loucura. Era outro tipo de história, de sofrimento. Aí tivemos que deixar um pouco de lado o romantismo e botar a razão pra funcionar. Fizemos, naquela época, um dos espetáculos mais lindos do Navegando, uma adaptação para crianças do Círculo de giz, do Brecht. O Paulo Reis tinha montado O círculo de giz Caucasiano para adultos e, desde que vi a montagem dele pela primeira vez, achei que era, na verdade, um tema ideal para crianças. Aí, fizemos a adaptação.

Da plateia
Como foi a relação do grupo com a Funarj, com o Villa-Lobos?

Dudu
Essa foi a primeira experiência de ocupação de teatros públicos por grupos, não?

Lúcia
Foi a primeira experiência e, por isso, houve muitos erros, muitos equívocos.

Da plateia
Vocês tinham verbas?

Lúcia
Não. Não tínhamos nada. Nós só tínhamos o teatro, o espaço, aquela coisa enorme pra administrar, e a tarefa de fazer dinheiro. Essa era a dificuldade maior.

Maria Helena
Em que ano foi isso?

Lúcia
1982.

Dudu
Primeiro governo Brizola, não é?

Lúcia
Isso. E era dificílimo. De um lado, havia um diretor, o Paulo Reis, que liderava o Despertar, e eu liderava o Navegando. O Despertar era cheio de ex-alunos meus, como Daniel Dantas e Fábio Junqueira. A maioria das pessoas do Despertar tinha vindo do Bennett. Os dois grupos, portanto, eram como uma só família. Mas eu briguei muito com o Paulo Reis. Brigamos demais, quase de tapa. Um dia, eu segurei ele pela gravata – uma coisa horrorosa o que a gente brigou. Mas eu o admirava profundamente. Era muito engraçado – depois que passa, é engraçado (risos.), mas, na hora, era horrível. Ele dizia: “Você só pode fazer teatro infantil, não pode fazer teatro adulto. E tem mais: os ingressos dos adultos que estiverem na plateia dos espetáculos infantis são do Despertar (risos.). Só os ingressos das crianças é que podem ser do Navegando”. Era ou não era engraçado? Eles também começaram a brigar entre si e algumas pessoas do Despertar passaram para o Navegando. A Zezé Polessa, por exemplo, era do Despertar.

Da plateia
Como vocês transavam essa coisa administrativa do teatro…

Lúcia
Era um horror. Era um verdadeiro horror. Você não tem ideia.

Da plateia, Nilvan Santos
E qual era o tempo de cada um para ensaios? Quando vocês tinham dois espetáculos em ensaio, como dividiam o palco?

Lúcia
Nisso a gente sempre se entendeu. Marcávamos estreia em datas diferentes. Mas, no Villa-Lobos, além de termos os nossos espetáculos, tínhamos que abrir o teatro para outros grupos, administrar os outros grupos. Quando chegamos lá, havia um único administrador para o Navegando e para o Despertar. O administrador só enchia a bola do Paulo Reis (risos.) – não enchia a bola da gente porque nós fazíamos teatro infantil. Teatro infantil não podia nada, íamos atrás do regulamento e reclamávamos: “Olha aqui, não tem diferença entre infantil e adulto.”, mas não adiantava. Não podíamos apresentar nada à noite, o que também era um absurdo. Aí a gente viu que um mesmo administrador para os dois grupos não dava certo e partimos para a divisão. O Paulo ficou com aquele, que cuidava mais dele mesmo, e nós conseguimos um outro. Teve uma época em que eu e o Paulo não nos falávamos. A gente nem se cumprimentava. Duro foi quando pensamos em fazer o Círculo de giz para crianças, baseado no espetáculo dele, que era uma coisa linda. Como estávamos brigados, ele entrava mudo, sentava e ficava assistindo aos meus ensaios. Eu, danada da vida porque também não podia botar ele pra fora: o teatro também era dele. E o Paulo ficava lá, assistindo. Uma semana antes da estreia, ele escreveu uma carta falando do desespero de um diretor na véspera de uma estreia e dizendo que queria me dar uns conselhos. Como ele não falava comigo, escreveu (risos.). E me sugeriu, por escrito, uma porção de coisas • primeira sugestão, segunda sugestão – e mandou outra pessoa me entregar a carta. As sugestões eram simplesmente maravilhosas, eu usei todas. E a gente continuou não falando um com o outro (risos.).

Dudu
Você não escreveu nenhuma carta-resposta?

Lúcia
Não. Não teve carta-resposta. Mas o Paulo viu que aceitei todas as sugestões que ele deu, mudei tudo que ele tinha sugerido mudar.

Da plateia, Célia Bispo
Eu vi as montagens de vocês dois. Fui aluna do Paulo. Uma das coisas que me levaram a fazer adaptações de textos clássicos para crianças foi justamente a sua montagem de Círculo de giz. Você é a culpada.

Lúcia Ai, que bom saber disso… (risos).

Da plateia, Célia
O Paulo teve uma participação nessa história. Naquela época, na Uni-Rio, como professor, ele era uma pessoa difícil, complicada. Eu queria fazer a adaptação de Sonho de uma noite de verão para crianças e ele dizia que não ia dar certo – “Só pode ser para adultos”. Eu respondia: “Se a Lúcia fez o Brecht para crianças, por que não posso fazer o Shakespeare?” O Nosconosco começou mais ou menos como você. Mas a responsabilidade, em suma, por eu ter enveredado pelo caminho da adaptação de clássicos para crianças é um pouco sua.

Lúcia
Que maravilha! Adoro essas culpas.

Dudu
Momento revelações… (risos.)

Lúcia
Essa culpa é boa. De algumas, a gente não gosta, mas dessa, eu gosto.

Dudu
Lúcia, durante os anos 80, o Navegando produzia. A partir dos anos 90, houve uma virada no panorama geral que, me parece, mudou a forma de produzir, de fazer espetáculos, sufocando um pouco a capacidade produtiva dos grupos que vinham dos anos 80. Isso é verdade?

Lúcia
É verdade.

Dudu
Como você, que nos anos 90 produziu mais espetáculos avulsos do que com o grupo, analisa essa mudança?

Lúcia
O problema é a velha história da sobrevivência. Quer dizer, naquela ocasião, década de 80, conseguíamos ganhar dinheiro com nossos espetáculos. Não tínhamos patrocínio – nunca tivemos. Praticamente nenhum crítico foi ver nosso primeiro espetáculo, o Tá na Hora, tá na Hora. Havia a Ana Maria Machado, no Jornal do Brasil e o Clóvis Levy, no Globo. O Clóvis nem atendia a gente, não queria saber, e a Ana Maria, idem. Mas a gente insistia. Eu enchi tanto a paciência da Ana Maria, que ela foi ao teatro no último fim de semana da temporada. E a crítica começava assim: “Despede-se essa semana do Espaço Cacilda Becker o Tá na Hora”. Isso depois de quatro meses em cartaz. Ela fez uma crítica maravilhosa. E aí, quando as pessoas começaram a falar bem do nosso trabalho, surgiu aquela necessidade de correspondermos expectativas do público, um compromisso com o resultado, que não havia antes. Senti saudades do teatro amador. Ninguém precisava falar nem bem nem mal dos nossos espetáculos. Bastava o prazer que encontrávamos no que fazíamos. Na realidade, a gente brincava muito, a gente se descobria nas brincadeiras. Porque, se você não brinca, só leva a vida a sério, não cresce. Aprendi isso com meus alunos, brincava tanto com eles que esquecia quem eu era. Nosso segundo espetáculo, o Duvide-o-dóera mais elaborado, mais bonito talvez, mas tinha o peso das expectativas, fruto do sucesso do Tá na Hora, Tá na Hora. Já éramos um grupo profissional que concorria com um monte de grupos. Comecei a me cobrar, vi que era uma diretora, que tinha que ser a melhor diretora, tinha que corresponder ao que esperavam de mim. Aí é difícil, o outro espera que você faça bem feito, o próprio grupo começava a fazer cobranças, eu não tinha para dar mais do que já estava dando a eles, mas eles me cobravam horrores (risos). E eu tinha que saber o que não sabia, tinha que ensinar técnicas que desconhecia.

Dudu
Afinal, você trouxe a gente até aqui…

Lúcia
Pois é.

Dudu
… agora, leva até o fim.

Lúcia
Aí aprendemos muito. Ficamos oito meses estudando, preparando o Duvide-ó-dó, eliminado aquelas expectativas para voltarmos a criar em liberdade. Ter prazer no processo criativo como antes. O teatro de som bras foi a técnica nova empregada nesse espetáculo. O resultado foi ótimo, mas sofremos muito.

Dudu
Mas fracassou?

Lúcia
Não, não fracassou. Tivemos um público legal. Conseguimos apoio do então SNT (Serviço Nacional de Teatro) – não era empréstimo, era doação mesmo. Por desconhecimento pedimos menos do que eles davam e gastamos mais. Mas, no fim do primeiro mês de temporada, já estávamos com a produção paga. Estreamos no Teatro Amazonas, em Manaus. Uma amiga nossa que mora lá agenciou nossa viagem. Ela tinha vendido a lotação toda do teatro, estava felicíssima e foi assistir a um ensaio num momento em que estávamos na crise de estreia. O Fábio Pillar tinha feito um boneco que ficou muito pesado e ele estava irritado com aquilo. Quando o ensaio acabou, Fábio disse que odiava o boneco, que detestava a cena dele, que estava com ódio do espetáculo e que não ia estrear coisa nenhuma. Pegou o boneco, jogou no chão e foi embora. Minha amiga ficou desesperada com o que viu e ouviu – “Meu Deus, já vendi tudo, como é que vai ser?” E eu: “Relaxa, porque isso faz parte. Amanhã ele vai ficar feliz, ele adora o boneco dele, adora a cena dele, trabalha nesse espetáculo há oito meses e isso é só véspera de estreia.” No dia seguinte, estreamos numa ótima. Esse foi o segundo espetáculo.

Dudu
E o terceiro, como foi?

Lúcia
O terceiro espetáculo foi o Passa, Passa Tempo. Entramos na pesquisa de animação a fundo, misturamos todas as técnicas que aprendemos anteriormente e investimos numa produção gigantesca pra gente. Elvira Rocha foi nossa coprodutora. O trabalho foi de uma intensidade, de uma coragem que me assustou. Na estreia pensei que ia morrer. Achei que não ia aguentar a emoção. Disse: Juro que é a última vez que passo por isso na vida, por uma estreia. Aí eu não morri e vi que dava pra aguentar. Vi que o medo da morte passa na estreia. Passou. Cada espetáculo tem uma história. O Tá na Hora tem uma história deliciosa. O Daniel Dantas estava fazendo pesquisas para descobrir tons para pintar as caras dos bonecos e a gente ficava horas experimentando tons diferentes. Visto de longe, não se percebia tom algum, mas a gente ficava horas naquela pesquisa, um silêncio danado, todo mundo fazendo seu boneco lá na NAU. Varávamos a noite. Um dia, o Fábio Pillar encheu o saco – ele, de novo -, nos chamou de loucos e disse que ia embora imediatamente. Eram 5h30 da manhã, a NAU ficava na Urca e, depois de certa hora, não havia mais condução. Nessa ocasião, eu tinha uma Belina, botava todo mundo dentro e distribuía em casa. Mas, naquele dia, o Fábio deu um ataque e disse que ia a pé mesmo. Saiu e bateu a porta. Só que, como fazia calor demais, ele estava de cueca e foi assim mesmo, com as roupas nas costas. Fiquei com pena, peguei o carro e fui atrás dele. E a cena que eu vi era muito engraçada. Aquele garoto enorme, com aquelas roupas nas costas, vestido só de cueca, dizendo para os espantados padeiros, jornaleiros e leiteiros que passavam: “Isso é o que dá trabalhar com gente louca, ficar convivendo com gente louca, isso é o que dá.” (risos.) Aí, eu dei uma carona pra ele. O Cara ou Coroa foi o quarto espetáculo do Navegando. Sempre a mesma equipe de criação, Caíque, Cica, eu e os mesmos atores. Completando o elenco de Cara ou Coroa: Bia Lessa e Tônico Pereira. Essa foi a peça inspirada no desenho. Num desenho de uma menina de 10 anos. E na sequência da nossa história a animação progredia. Acho que deveríamos estar até hoje vivendo esse processo eterno, mas começamos a ganhar pouco e não podíamos mais nos dar ao luxo de nos dedicarmos tantas horas por dia ao nosso trabalho. Tínhamos que pagar as contas.

Da plateia, Nilvan
Quando os seus espetáculos começaram a perder público?

Lúcia
Começamos a penar mesmo em 84, 85. Foi a pior fase.

Da plateia, Nilvan
Na década de 80 não acontecia nada.

Lúcia
Começamos a procurar emprego e percebemos que não tínhamos “profissão”. O que nós éramos? O que nós fazíamos era curtição? Não dava pra viver do trabalho da gente. Começamos a procurar “trabalho” e tudo o que ganhávamos botávamos no espetáculo. Foi quando começou essa história de que o teatro adulto dava mais dinheiro… Então, meus atores começaram a ser convidados para participar de espetáculos adultos. Aí, a coisa de grupo fechado acaba. Foi diluindo, diluindo. Até hoje a gente trabalha com quem não está em algum espetáculo. Tem fulano, fulano e fulano, a gente reúne. Então, muitos foram saindo, outros foram entrando.

Maria Helena Kühner
Mas, com isso, perde-se uma coisa que é fundamental, que é a questão da continuidade. Este já é o 6 a Seminário e uma coisa que tem me chamado a atenção até agora e que tem sido uma constante, é o fato de que todos os grupos que tiveram continuidade no trabalho são, realmente, os mais expressivos. Todos tiveram uma história semelhante de aprendizado comum, de descoberta em comum, de emoção vivida junto, de dificuldades enfrentadas. Essa constante tem sido muito significativa.

Lúcia

É, é uma pena mesmo.

Dudu Apesar disso tudo – na década de 90 o grupo só produziu Copélia, se eu não me engano -, você continua sendo absolutamente fiel ao grupo. Seus trabalhos, em geral, contam com as mesmas pessoas, a Cica, o Caíque, a Zezé Polessa, que são seus parceiros até hoje.

Lúcia
Sempre, na medida do possível. Essa fidelidade – a da parceria de trabalho – existe na medida do possível. Mas a gente é fiel no sonho, no amor. É muito difícil, pra mim, trabalhar com outro cenógrafo, com outro músico. Como é difícil trabalhar sem a Andréa Dantas, ela, por exemplo, viaja muito, vai embora nos sonhos dela, mas tem um pé na realidade muito grande. Ela é a pessoa que traz a gente pro real, e eu preciso disso porque eu não tenho nenhum pé na real. Com toda essa minha idade, não aprendi. Não aprendi essa lição.

Dudu
A Andréa entrou no Navegando quando?

Lúcia
No primeiro dia.

Dudu
Fundadora.

Lúcia
É, estamos juntas a vida inteira. Esse grupo está junto a vida inteira. Copélia já foi o sétimo espetáculo do grupo, Lia Rodrigues se incorporou ao Navegando.

Da plateia, Nilvan
Tem alguma receita para um grupo durar tanto tempo assim?

Lúcia
Não, não existe receita. Paixão pelo teatro, dedicação, disponibilidade, coragem são bons ingredientes. Nosso trabalho é fruto da emoção, não do intelecto. No primeiro dia de ensaio, a primeira coisa que faço é destruir o intelecto de todo mundo. Tem gente que traz um intelecto imenso e é preciso trabalhar para matar esse intelecto. Ele não pode existir no trabalho, não é convidado para trabalhar. O fundamental é trabalhar com nossa emoção mais pura, livre, buscando a verdade, tentando se descobrir. Durante o processo vivemos milhões de experiências novas, elas tomam conta da gente e isso é a melhor coisa. É como acontece com alguns autores, Minha irmã, por exemplo, é uma grande autora e escreveu uma porção de peças. No princípio da minha vida – ela é dez anos mais velha que eu – eu achava que não sabia escrever. Então, eu a obrigava a escrever os textos que eu queria montar. O SNT abriu concurso, eu a obriguei a participar e o resultado foi o máximo: Marília ganhou o primeiro, o segundo e o terceiro lugares com os três textos que ela havia inscrito. Mas essa história é só para lembrar uma, então, meus atores começaram a ser convidados para participar de espetáculos adultos. Aí, a coisa de grupo fechado acaba. Foi diluindo, diluindo. Até hoje a gente trabalha com quem não está em algum espetáculo. Tem fulano, fulano e fulano, a gente reúne. Então, muitos foram saindo, outros foram entrando.

Maria Helena Kühner
Mas, com isso, perde-se uma coisa que é fundamental, que é a questão da continuidade. Este já é o 6 a Seminário e uma coisa que tem me chamado a atenção até agora e que tem sido uma constante, é o fato de que todos os grupos que tiveram continuidade no trabalho são, realmente, os mais expressivos. Todos tiveram uma história semelhante de aprendizado comum, de descoberta em comum, de emoção vivida junto, de dificuldades enfrentadas. Essa constante tem sido muito significativa.

Lúcia
É, é uma pena mesmo.

Dudu Apesar disso tudo – na década de 90 o grupo só produziu Copélia, se eu não me engano -, você continua sendo absolutamente fiel ao grupo. Seus trabalhos, em geral, contam com as mesmas pessoas, a Cica, o Caíque, a Zezé Polessa, que são seus parceiros até hoje.

Lúcia
Sempre, na medida do possível. Essa fidelidade – a da parceria de trabalho – existe na medida do possível. Mas a gente é fiel no sonho, no amor. É muito difícil, pra mim, trabalhar com outro cenógrafo, com outro músico. Como é difícil trabalhar sem a Andréa Dantas, ela, por exemplo, viaja muito, vai embora nos sonhos dela, mas tem um pé na realidade muito grande. Ela é a pessoa que traz a gente pro real, e eu preciso disso porque eu não tenho nenhum pé na real. Com toda essa minha idade, não aprendi. Não aprendi essa lição.

Dudu

A Andréa entrou no Navegando quando?

Lúcia
No primeiro dia.

Dudu
Fundadora.

Lúcia
É, estamos juntas a vida inteira. Esse grupo está junto à vida inteira. Copélia já foi o sétimo espetáculo do grupo, Lia Rodrigues se incorporou ao Navegando.

Da plateia, Nilvan
Tem alguma receita para um grupo durar tanto tempo assim?

Lúcia
Não, não existe receita. Paixão pelo teatro, dedicação, disponibilidade, coragem são bons ingredientes. Nosso trabalho é fruto da emoção, não do intelecto. No primeiro dia de ensaio, a primeira coisa que faço é destruir o intelecto de todo mundo. Tem gente que traz um intelecto imenso e é preciso trabalhar para matar esse intelecto. Ele não pode existir no trabalho, não é convidado para trabalhar. O fundamental é trabalhar com nossa emoção mais pura, livre, buscando a verdade, tentando se descobrir. Durante o processo vivemos milhões de experiências novas, elas tomam conta da gente e isso é a melhor coisa. É como acontece com alguns autores, Minha irmã, por exemplo, é uma grande autora e escreveu uma porção de peças. No princípio da minha vida – ela é dez anos mais velha que eu – eu achava que não sabia escrever. Então, eu a obrigava a escrever os textos que eu queria montar. O SNT abriu concurso, eu a obriguei a participar e o resultado foi o máximo: Marília ganhou o primeiro, o segundo e o terceiro lugares com os três textos que ela havia inscrito. Mas essa história é só para lembrar uma coisa que ela costumava dizer sobre o processo de criação. Quando eu reclamava que tínhamos combinado uma trajetória para determinado personagem e ela havia mudado tudo, Marília respondia: “Não fui eu quem mudou, foi o personagem que desviou.” Muito tempo depois eu entendi o que ela queria dizer. O processo toma conta mesmo. Não sei como explicar essas coisas. Quando começamos a escrever Cara ou Coroa, não sabíamos que se tornaria uma história sobre separação. Saíram quatro histórias de reis que se separavam de rainhas. Quando o espetáculo acabou, eu me separei. Você vai explicar isso? Comentei com o grupo: “Gente, eu já estava me separando e não percebi”. Mas não era uma coisa racional. As ideias vão surgindo e quando o processo toma conta, é assim.

Dudu
E quando os atores deixaram de ser bonequeiros, como era a relação no grupo? Como se deu isso?

Lúcia
Começamos com o boneco e o boneco nos levou para o ator. No primeiro trabalho, a gente tentava se esconder, usava a técnica da manipulação. Depois, vimos que aquilo era só uma questão de transferência da energia do corpo para o braço, mas era o ator que estava ali. Então, passamos a trabalhar com o ator aparente. Tudo acontecia assim. A gente ia descobrindo mesmo no dia-a-dia. E os bonecos estão sempre presentes nas nossas histórias.

Da plateia, Nilvan
Como foi o processo de trabalho com os bonecos?

Lúcia
Foi um processo de integração: boneco-gente. Percebemos a importância do manipulador. A energia do ator é transferida para o boneco e os dois se integram, e é lindo deixar isso aparente. Nós tínhamos visto vários filmes de mestres de bonecos, aprendemos com eles, experimentávamos. Quando a gente não acredita que o boneco é de verdade, é porque o manipulador não lhe emprestou vida, não sabe manipular. Sempre gostamos nos nossos espetáculos de revelar os dois: ator e personagem boneco. O Papagueno tem isso, é uma aula de manipulação. O trabalho do Fernando Sant’Anna é fantástico. Ele me emociona muito. Outro dia, disse pra ele: “Acho que eu tenho que segurar o rabo do papagaio, porque parece que ele vai sair da sua mão e vai embora sozinho”. Ganhou vida, né?

Da plateia, Nilvan
Criador e criatura.

Lúcia
Isso é muito lindo. O manipulador aprende com o boneco e com a manipulação. E que nós, brasileiros, não temos a oportunidade de aprendermos isso. E o boneco enriquece o ator. O ator tem, claro, seu corpo. E, quando o personagem é gente, ele é composto de acordo com as possibilidades físicas de seu intérprete, quando o personagem é boneco, você cria, esculpi. Tem qualquer cara, qualquer tipo. Logo, ele não tem compromisso com você, com seu físico. O importante é que ele vibre e o coração dele bata. O boneco pode ser lindíssimo, mas sem alma, vira alegoria.

Dudu
E o Centro Cultural Gama Filho? Como está sendo a experiência de administradora?

Lúcia
E uma experiência nova, mas tenho recebido total apoio da direção da Universidade, a nossa equipe do Centro Cultural está realizando um bom trabalho.

Dudu
Como você chegou lá? Você conhecia a família Gama Filho?

Lúcia
Conheço a família há muitos anos. O vice- chanceler, o presidente e os novos diretores acompanharam minha trajetória artística desde que eram crianças. Alguns foram meus alunos. Assistiram a meus espetáculos. E quando o Cine-Teatro Dina Sfat ficou pronto, me convidaram para dirigir o Centro Cultural.

Dudu
Essa história da escola de artes é pra valer, está acontecendo mesmo?

Lúcia
Vai acontecer. Tem um prédio em construção que vai abrigar as oficinas com exposições e eventos também, por enquanto o Centro Cultural funciona com um Cine-Teatro, uma galeria de arte, um foyer, e um caminhãozinho cultural. Nesses espaços vêm sendo realizadas as apresentações de espetáculos teatrais, musicais, danças, exposições, ciclo de arte, entre outros eventos. Estamos também fazendo parcerias com artistas nas produções. A dificuldade de patrocínio é muito grande, mesmo com essa história de Lei de Incentivo Cultural. Até agora, conseguimos muito pouco, a Coca-Cola patrocinou o Papagueno. E a gente faz book, book, book, um monte de books (risos). Gasta um dinheirão e não consegue nada. E o que foi que inventamos? A parceria. O Centro Cultural fornece a mão-de-obra, os técnicos, as montagens de luz e som, a divulgação e uma produção executiva que já tem conseguido muitos apoios. Fizemos agora um ciclo medieval. Ricardo Venâncio e Márcia Frederico realizaram conosco. A equipe do Centro Cultural por não ter conseguido nenhum patrocínio, fez o evento. Desde criar, escrever, ensaiar, costurar, colar botão, fazer coquetel e receber o público. Uma das nossas funcionárias sonha em participar de uma oficina com o Fernando Sant’Anna. Já pensaram o que a gente vai poder realizar um dia?

Lúcia Cerrone
O teatro do Centro Cultural tem tudo, é maravilhoso, a luz é maravilhosa, tudo é bárbaro. Mas o problema é o público. Como levar o público de teatro até a Gama Filho? Uma guerra já foi ganha. A imprensa já vai até a Piedade. Isso é uma conquista e tanto. Sério. Porque é aquilo que a gente conhece: “Ah, eu não atravesso o túnel. Se atravessar, a Tijuca é o limite.” Não é verdade? (risos.)

Lúcia
A Tijuca é o limite. Não é o céu, é a Tijuca.

Lucia Cerrone
E isso não é uma coisa do profissional de imprensa, é uma coisa do jornal. Teatro longe não é notícia. Mas o teatro da Gama Filho já venceu esta barreira. O problema agora é descobrir como atrair o público…

Lúcia
Esse é o nosso maior problema, mas parte dele está resolvido. Público pra música, a gente tem. Lota. Com cinema, idem. Já para espetáculo infantil o público natural é a comunidade do bairro e a comunidade de Piedade não vai a lugar nenhum. Vê televisão. Então, conquistar essa comunidade está sendo difícil. Mas sabem o que está nos ajudando? O caminhãozinho. O caminhãozinho-teatro que nós fizemos. Temos um caminhão que vira palco.

Da plateia
Como é esse caminhão?

Lúcia
Um caminhãozinho Chevrolet 39 e o Gringo Cardia fez o trabalho de cenografia. O caminhão vai para as praças e lá o palco é montado.

Da plateia Na vizinhança mesmo?

Lúcia
Na vizinhança, mas já foi até pra Copacabana. Sabe como nasceu a história do caminhão? Quando um divulgador disse que a imprensa não ia a nenhum espetáculo em Piedade… Então, pensei, vou fazer um caminhão que vai sair da Piedade para ir a algum lugar que a imprensa visite. Onde é esse lugar? Em Copacabana? Então vamos fazer um teatro que sai da Piedade e vai pra Copacabana. Quero ver se eles não vão publicar nada… E deu certo. Fomos capa do Globo, na ocasião, só porque estávamos em Copacabana. Na vizinhança, a gente consegue público. Na Zona Sul, o que a gente consegue? Mídia. Nós precisamos da mídia e do público. Nas estreias, a plateia fica cheia, depois, começa a diminuir. Não é o trabalho, não é o espetáculo. É, realmente, a falta de hábito.

Da plateia, Gilson
E você consegue manter público? Pergunto, porque eu e meus companheiros aqui temos um espaço um pouco mais longe, em Bangu. Com música, lota, arrasa. Com teatro, complica. O espaço tem 350 lugares e damos 200 ingressos por apresentação de infantil, mas não adianta. Aparecem cinco, seis pessoas. Estamos trabalhando para a formação de plateia básica. Mas quando levamos para lá Confissões de adolescente, lotou.

Lúcia
Confissões de adolescente também foi para a Gama Filho e arrasou. Você vê que as histórias são parecidas.

Da plateia, Gilson

Já um Shakespeare lindo que tivemos lá, não atraiu ninguém. Priscila Camargo se apresentou de graça e pouquíssimas pessoas assistiram. Lá é muito difícil. Com espetáculos de dança é a mesma coisa. Não tinha quase ninguém para ver a Lia Rodrigues. Aí vai uma proposta. Estabelecermos parceria com os centros de cultura, como o da Gama Filho…

Lúcia Claro. Olha, acho que esse problema de público pode ter uma solução com a chegada de novos teatros à Zona Norte. O Falabella vai inaugurar o dele, no Méier, e isso é ótimo. Quanto mais gente, mais teatro abrindo, melhor. Agora a gente vai oferecer os espetáculos de graça lá no Centro. E uma forma de conquistar o público.

Da plateia, Célia
Mas quem está bancando isso? A Gama Filho?

Lúcia
Ela paga o cachê para os atores que realizam o espetáculo.

Da plateia, Aurélio de Simoni
Eu sou morador de Padre Miguel. O pessoal da Lona Cultural Hermeto Paschoal faz um trabalho hercúleo lá, com os meus vizinhos. Sou nascido e criado em subúrbio e o teatro me veio numa experiência de juventude, quando participei de um espetáculo escrito, dirigido e montado por um grupo de Padre Miguel, o Moca (Movimento Cultural e Artístico). Fizemos uma apresentação no Teatro Artur Azevedo naquela época eu tinha 18 anos. E o engraçado é que nesse espetáculo eu não estava numa cabine de luz, estava no palco.

Lúcia
Você era ator?

Da plateia, Aurélio
Eu era o cantor. Fazia parte de um grupo chamado Moquarteto. Nós lotamos o Artur Azevedo com aquela única apresentação. Depois, fizemos uma apresentação no Armando Gonzaga, em Marechal Hermes, e já não foi tão bem. Fizemos ainda um debate no Glauce Rocha. Aí, o grupo foi cassado, cada um foi pro seu lado e eu esqueci teatro. Um dia, o teatro voltou e eu entrei nessa coisa da luz. Mas acho que a conquista do público lá na nossa área, Zona Oeste e Zona Norte, é um trabalho que tem que ser feito de uma forma hercúlea mesmo… Fico pensando no que eu posso fazer, dentro do meu pouco tempo disponível, para contribuir. Só me vem uma resposta: é preciso conscientizar o público, levar nossa proposta cultural às pessoas que desconhecem o que é a atividade teatral. Porque a verdade é essa: o meu vizinho sabe que eu faço teatro porque, de vez em quando, ele vê meu nome no jornal, mas ele não sabe do que se trata. Pra ele, eu sou aquela pessoa…

Lúcia

Que apaga e acende a luz.

Da plateia, Aurélio
Não. Pra ele, eu sou aquele cara que conhece aquelas pessoas que aparecem na telinha mágica. Então, peço a vocês que estão batalhando pelo público na Zona Oeste, na Zona Norte, que continuem, que não desistam, pelo amor de Deus. Porque quando o meu vizinho souber o que é teatro, a vida dele vai ficar melhor.

Lúcia
Para encerrar eu quero dizer a vocês que nós estamos abertos pra continuar esse debate lá. A gente pode fazer uma mobilização com a Zona Norte, com o pessoal que já faz teatro por lá ou com quem quer abrir um teatro. Temos que tentar apoiar uns aos outros, trocar ideias, experiências. Podemos ganhar essa guerra de público. É o que todos nós queremos e é disto que precisamos.

Barra

Obs. Em fevereiro de 2000, foi realizado para este site uma entrevista com Lúcia Coelho, com informações de seus espetáculos. Em dia 03 de Outubro de 2006, no Teatro Cacilda Becker, foi realizada uma segunda entrevista para o site, dentro do projeto Encontros & Oficinas.