Apesar das inúmeras medidas públicas, das severas leis e programas de conscientização adotados, a violência contra a mulher no Brasil só aumenta, em crescentes sucessões de crimes de feminicídio, além de assustadores índices de agressão física, moral, psicológica e afetiva. A ineficácia das medidas de punição com vistas à redução dos crimes revela que o tema precisa ser abordado com base em ações que oportunizem a consciência de que essa violência está fundamentada em aspectos culturais que precisam ser modificados desde a raiz.  

Segundo Humberto Maturana e Gerda Verden-Zoller (2004), a configuração do emocionar embasa a conservação das maneiras de conviver em uma determinada cultura, durante seguidas gerações. Para os autores, a especificidade da coordenação de coordenações de ações e emoções (2004, p.14) resulta na rede de conversações que constitui os modos de convivência de uma dada cultura, gerando hábitos, valores e maneiras de perceber o mundo.

As dramaturgias estão imbricadas no contexto histórico sociocultural do qual fazem parte e exercem funções basilares na estruturação social, visto serem essenciais às formas de subjetivação desenvolvidas em cada sociedade, aos valores éticos e morais que as respaldam, às construções discursivas críticas, às consolidações de pedagogias subliminares e ao direcionamento da estruturação de desejos, anseios e objetivos que predominam em determinados contextos culturais. Evidentemente, essas dramaturgias participam dessas mesmas construções, vinculadas a outros fatores sociais que, por sua vez, são influenciados por elas e as influenciam.

A definição de dramaturgia sofreu diversas alterações no decorrer da história. Em meus estudos, proponho conceber a dramaturgia como a criação discursiva de um trabalho estético composto de ações em desenvolvimento, num processo autoral axiológica e perceptivamente direcionado (BAKHTIN, 2010) (01), que forma um conjunto complexo de elementos organizados em tempo e espaço ficcional (02) de maneira roteirizada, denotando, de forma latente ou explícita, a possibilidade de materialização em outra linguagem artística.

Entendo também, que a dramaturgia pode ser concretizada em sentido estrito, como texto literário de caráter tabular (UBERSFELD, 2010) ou, em sentido amplo, como construção discursiva da encenação (PAVIS, 2010). Dessa forma, peças teatrais, obras audiovisuais e videoclipes, além de determinadas criações musicais, coreográficas e circenses, podem ser observadas do ponto de vista da criação dramatúrgica.

No que diz respeito às construções de gênero, pedagogias subliminares predominantes em discursos artísticos da cultura brasileira contribuem de forma contundente na manutenção e na geração do emocionar que resulta em agressões contra a mulher. Não é possível deixar de associar os altos índices de feminicídio no Brasil, os números de estupro, as agressões físicas, verbais e morais sofridas pelas mulheres, às produções culturais de imagens de mulher-objeto em incontáveis realizações artísticas oriundas de diversos setores da sociedade que incentivam o abuso sexual, moral e, até mesmo, as agressões físicas contra as mulheres. Um exemplo bastante eloquente dessa realidade é o vídeo da música “Fala aqui com a minha mão”, de Wesley Safadão (03), um cantor muito popular nas camadas menos intelectualizadas da sociedade brasileira. A letra da composição prega a irresponsabilidade masculina com a companheira (agregando status social a esse comportamento que é incentivado e louvado) e induz à agressão física contra a mesma, caso ela demonstre descontentamento com o desrespeito sofrido, versando: “Fala aqui com a minha mão, que eu não ‘tô’ com paciência para muita discussão”. Por que esse tipo de manifestação não é considerado crime em nossa sociedade? As recentes conquistas no campo racial, religioso e da afetividade gay têm evitado, a respeito dessas questões, manifestações culturais explícitas desta natureza (embora, infelizmente, ainda existam as agressões estéticas implícitas em grande quantidade).  Por que em relação à mulher essas violências são toleradas? Mais assustadora ainda é a maneira como essas construções discursivas são justificadas e banalizadas. Num dos vídeos que apresenta a canção citada, as pessoas dançam abrindo e fechando o polegar em oposição aos demais dedos unidos, como se a mão estivesse falando, o que, para alguns, resulta na compreensão de  que se trata de uma brincadeirinha inocente. No entanto, deixar uma pessoa que foi desrespeitada falando sozinha não é, por si só, uma grande agressão? A ambiguidade do gesto e os valores louvados na canção não deixam nenhuma dúvida sobre o incentivo à prática de desrespeitos de múltiplas ordens contra a mulher. Infelizmente, nossas produções culturais estão repletas de exemplos dessa natureza.

À revelia de a legislação brasileira condenar os crimes de abuso contra a mulher, inúmeros objetos estéticos, para adultos e crianças, continuam incentivando os mais variados tipos de violência, falsamente respaldados em discursos que defendem a “liberdade de expressão”. O enorme público que consome essas dramaturgias revela, de forma assustadora, o quanto a sociedade brasileira ainda precisa evoluir nesse sentido e explicita os motivos emocionais e axiológicos que fazem com que as legislações tenham sido muito pouco eficazes na diminuição de agressões morais, físicas e afetivas contra as mulheres.

Mesmo em meio às inúmeras discussões atuais sobre o tema, ainda predominam construções artísticas cujo discurso de gênero ou objetifica a mulher ou idealiza a sua capacidade de tolerância, de luta e de conseguir realizar diversas tarefas ao mesmo tempo. Essas dramaturgias respaldam, subliminarmente, atitudes de exploração e abandono afetivo e estrutural sofrido por milhões de mulheres.

No que diz respeito à infância, meninas e meninos são vítimas de um sistema que os rotula em estereótipos comportamentais que dificultam a percepção de um mundo constituído no respeito à diversidade e na valorização das atitudes de cooperação e real interesse em aprender na alteridade. Desde a mais tenra idade, as meninas são submetidas a construções estéticas e comportamentais que as valorizam como objetos sexuais ou, ao contrário, como seres maternais desprovidos de sexualidade e desejo. Já os meninos são confrontados com modelos de masculinidade em que a força física e o desfrute sexual de diversas mulheres são considerados ideais, dificultando que ações de cumplicidade e respeito para com suas companheiras gerem o prazer e a satisfação que poderiam ser vivenciados com base em princípios culturais diversos.

A cultura machista é composta por valores basilares e emoções que englobam homens e mulheres em um sistema complexo no qual a polarização de gênero resulta em percepções sectárias que não contribuem na superação do problema. Dizer que determinadas mulheres se comportam de maneira tal, que provocam determinadas atitudes por parte dos homens, tem sido argumento de justificativa do machismo em diversos contextos. O comportamento de homens e mulheres resulta de pressões e valores sociais que os respaldam. Qualquer tentativa de simplificação e generalização resultaria em análises superficiais. A violência contra a mulher (alicerçada no machismo) não é uma questão de responsabilização de gênero, mas sim, um problema cultural que engloba toda a sociedade de forma complexa e induz comportamentos e visões de mundo. Enquanto esse tema não for abordado enfaticamente na raiz do problema, não acredito que alguma lei , por si só, poderá evitar a crescente sucessão de agressões e crimes existentes em nossa sociedade.

Cabe integrar a esta reflexão, o quanto as emoções que geram essas ações têm resultado em milhares de crianças sem pai e na sobrecarga de mulheres, as quais, muitas vezes, ainda são responsabilizadas por serem mães solteiras, sem haver uma cobrança moral e severa no que concerne ao abandono paterno, apesar do avanço ocorrido na legislação atinente em nosso país. A condescendência social com a irresponsabilidade paterna é revelada, por exemplo, quando um homem é declarado um excelente pai porque visita os filhos nos finais de semana, os leva para passear e ajuda nas despesas. Quando uma mãe seria louvada por tal comportamento?

Quantos dos adolescentes mortos diariamente no Brasil são oriundos de famílias desestruturadas e sofrem com a rejeição física, sentimental e moral paterna? Quantas crianças são vítimas do abandono afetivo materno devido à desestruturação emocional de mães subjetiva e objetivamente sobrecarregadas, além de moralmente abusadas? O oferecimento de estrutura física pode maquiar, em muitos casos, a ausência de cumplicidade emocional sofrida por milhares de crianças e jovens. O abandono afetivo na infância e na adolescência, que resulta da desestruturação emocional da cultura machista, agride mulheres e homens e está presente em todas as classes sociais.

Por certo, essa realidade é composta por inúmeros fatores vinculados a seus contextos específicos. No entanto, o papel das manifestações discursivas artísticas da cultura machista é contundente nos processos que geram e respaldam construções éticas, morais e afetivas que embasam as emoções, das quais resultam ações de desrespeito e violência contra a mulher.

Em meio à complexidade das constituições sociais, não é possível nem idealizar o papel das construções discursivas do teatro, audiovisual, música e artes plásticas, nem negligenciar a força da sua influência na configuração de cada sociedade. Com base na convicção de que somente a alteração de emoções que são geradas por valores éticos e morais subjetivados e objetivados em ações, defendo a fundamental relevância da criação de dramaturgias radicais no combate à violência contra a mulher.

Desenvolvi o conceito de dramaturgia radical no decorrer do meu doutorado, realizado no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação de João Pedro Gil.

A dramaturgia radical está fundamentada no envolvimento investigativo, afetivo, político e pedagógico de quem cria composições artísticas, revelado na assunção de sua responsabilidade, conforme preconiza Mikhail Bakhtin (2010). A noção de radical que abordo é proposta por Paulo Freire (2016 [1970]), para quem o posicionamento radical pressupõe a permanente busca de consciência na percepção das ações em seus contextos sócio-históricos, reconhecendo a dialeticidade necessária a toda a transformação, por meio de escolhas embasadas na práxis, que é composta por ação e reflexão. Associo esse embasamento à noção de pedagogia radical, que Henry Giroux (1988) propõe ao vincular os pensamentos de Freire e Bakhtin. Para Giroux, os textos são construtos sociais concatenados aos interesses que o sustentam e legitimam e podem tanto possibilitar quanto restringir determinadas representações sociais e reflexões. Giroux entende que todo o texto é gerado pelo contexto e gerador deste mesmo contexto, em uma construção dialética que possibilita transformações, mas também pode ratificar e fortalecer valores constituídos.

No conceito de dramaturgia radical, agrego aos autores citados, as idéias desenvolvidas por Maturana e Verden-Zoller (2004) sobre a origem matrística da humanidade.  A compreensão matrística da noção de radical resulta no entendimento de que não há nem subordinação nem independência absoluta de nenhum campo do viver e do saber. Assim, todas as ações, pensamentos, sentimentos e percepções humanos estão encadeados em um amplo sistema no qual são gerados e geradores, constituindo complexas relações dialéticas de coordenações interdependentes de geração das condições de vida. Desse modo, o sentido figurativo de origem presente na palavra raiz é um aspecto basilar no entendimento da dramaturgia radical como fator determinante na construção moral, ética, estética e afetiva social. Nesse sentido, encontro na brincadeira as raízes da dramaturgia (SANTOS, 2004; JUGUERO, 2014) e os fundamentos ontológicos da complexidade de seu papel na constituição social como um todo.

Para Paulo Freire (2016 [1970]), o posicionamento radical é dialético e precisa ser desenvolvido por meio da consciência colaborativa e do esforço de pensar no modo de pensar da outra pessoa ou grupo, respeitando as diferentes culturas e modos de expressão. Nesse processo, o pensamento crítico surge do diálogo que oportuniza a transformação e reflexão de todos os envolvidos, não havendo uma via de mão única na qual os detentores da sabedoria apresentam verdades absolutas a seres considerados ignorantes e desprovidos de toda a consciência. Com base nessas premissas, a noção de radical que proponho para o conceito de dramaturgia radical é constituída pela integração entre razão e emoção, não sendo possível prescindir nem da consciência nem da afetividade, nem da objetividade, nem da subjetividade, as quais operam em permanentes relações dialéticas.

A dramaturgia radical é gerada por reflexões, afetamentos e instabilidades. A pessoa criadora é convidada a refletir sobre si mesma e sobre os grupos com quem pretende dialogar. Ela precisa ainda reconhecer que as criações artísticas abarcam escolhas conscientes e construções inconscientes, assim como fatores culturais e pessoais, subjetivos e objetivos, identificáveis ou não identificáveis (BAKHTIN, 2010). Neste tipo de criação, a autora ou o autor aceita colocar-se em uma situação de “risco responsável” – uma posição que pode ser comparada, metaforicamente, com o equilíbrio precário que Barba (1995) sugere ao ator – na qual é possível ousar e assumir escolhas estéticas, éticas, afetivas, políticas e pedagógicas evidenciadas na composição artística e nas formas de proposição dialógica.

O posicionamento filosófico (04) que embasa a dramaturgia radical está distante tanto da intenção de transformar o mundo abruptamente quanto de acreditar que é impossível transformá-lo. Ao reconhecer que as elaborações artísticas fazem parte de uma engrenagem social em permanente construção, assim como todos os discursos e atos, percebe que as dramaturgias integram a cultura cotidiana de forma intensa e significativa, exercendo papel eloquente nas constituições axiológicas culturais que respaldam as coordenações de ações e emoções que geram os modos de vida.

A dramaturgia radical não pretende apresentar discursos ortodoxos, mas sim, possibilitar novas percepções sobre os aspectos culturais que oportunizam a manutenção e ampliação das agressões contra a mulher. Este tipo de criação pode explicitar e questionar construções artísticas discursivas que suscitam elaborações subjetivas e emocionais que respaldam a violência contra a mulher. As dramaturgias radicais precisam desnudar a contradição que a cultura brasileira abarca ao gerar tanto as necessárias e bem elaboradas leis que confrontam as agressões contra a mulher, quanto os produtos culturais que as originam e sustentam. Elas podem ser uma maneira de lutar não somente contra o efeito da violência, mas, em especial, contra suas causas. Como gerar novas emoções e desejos que resultem em transformações efetivas dos modos de agir e relacionar?

No que diz respeito às crianças e adolescentes, a dramaturgia radical compreende as especificidades de linguagem em cada caso, reconhecendo a lógica lúdica do pensamento infantil (JUGUERO, 2014) e os processos de constituição de valores, hábitos e afetos predominantes nesses momentos da vida. Dessa forma, as criações afetivas, envolventes e desafiadoras parecem ser caminhos que respeitem a autonomia das crianças na criação de sentidos e instiguem as múltiplas percepções, vetorizando (PAVIS, 2010) caminhos de construções éticas e morais que contribuam em um posicionamento que possa ser crítico, autocrítico e afetivo. As dramaturgias para crianças podem colaborar na percepção orgânica da diversidade, na desconstrução de modelos de gênero hegemônicos e na elaboração de distintas maneiras de agir e emocionar, fundamentadas no amor e no respeito à alteridade.

Por fim, cabe salientar que este artigo integra meu trabalho como pesquisadora e artista criadora, tendo a práxis, como base investigativa, fundamentada na metodologia dialética que João Pedro Gil (1999, 2004) propõe ao campo das Artes Cênicas, na qual teoria e prática são reconhecidas como parte integrante de um mesmo processo criativo, sem dissociação e em cooperação.

Notas

(01) Ou vetorizado, conforme Patrice Pavis (2010)
(02) Cronotopo, segundo Mikhail Bakhtin (2010)
(03) O vídeo está disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=tItTvA4e6eo
(04) Com base no entendimento de que o pensamento filosófico é toda a construção heterocientífica que enfoca a complexidade da vida (BAKHTIN, 2010).

Referências

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2010.BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: Dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec Ed. da Unicamp, 1995.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra, 2016.GIL, João Pedro Alcantara. “A abordagem dialética na pesquisa de teatro e educação”. CENA: Revista do Departamento de Arte Dramática da UFRGS. Porto Alegre, n. 3, p. 59-66. Novembro de 2004.Para além do jogo. Tese (Doutorado). Universidade Federal de Santa Maria. Programa de Pós-Graduação em Educação, Santa Maria, 1999.GIROUX, Henry. Escola crítica e política cultural. São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1988.JUGUERO, Viviane. Bando de Brincantes: um caminho dialético no teatro para crianças. Dissertação (mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Porto Alegre, 2014.MATURANA, Humberto; VERDE-ZOLLER, Gerda. Amar e Brincar. São Paulo: Palas Athena, 2004.PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2010.

SANTOS, Vera Lúcia Bertoni dos. Brincadeira e conhecimento: Do faz-de-conta à representação teatral. Porto Alegre: Mediação, 2004. UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.

Viviane Juguero 

Dramaturga, brincante, professora e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRGS.