Elenco entrosado – Rita Fernandes vive Pedro e Luiz Felipe Carvalho interpreta o burro: espetáculo sincero e sem a pretensão de criar novos conceitos

Crítica publicada no Jornal do Brasil
Por Ricardo Schöpke – Rio de Janeiro – 05.12.2009

A trajetória de uma santa amizade

Cia Teatral Brasil com Arte relê a história de São Francisco com delicadeza e sem exageros

A primeira década do século 21 não foi muito representativa para o teatro infantil carioca, em que pese à dificuldade de surgir uma renovação tão acelerada como a dos anos 90. Os espetáculos para crianças não apresentaram de fato nenhum nome novo, um grande destaque ou uma verdadeira revelação, em relação a inovações na linguagem cênica, encenação, dramaturgia e atuação. Neste período vimos poucas companhias de teatro, com um trabalho continuado, despontarem em nossa cidade. Dito isso, eis que aparece no cenário carioca infantil uma ótima surpresa: a Cia. Teatral Brasil com Arte, que apresenta no SESC Tijuca o espetáculo A Canção de Assis.

Fazendo-se valer de alguns temas e formas já bastante utilizadas no contexto do teatro para crianças – artistas mambembes, carroças, acrobacias, personificação de animais em cena, e um enredo sobre um santo muito querido, aos que amam animais – a companhia conseguiu unir todos estes ingredientes e contar uma surpreendente história de amizade entre um menino rejeitado, e um animal que carrega em seu lombo a eterna sina de ser pouco inteligente; o burro. O texto de Julio Fischer apresenta uma trupe de atores narrando a história de Pedro, um garoto pobre, abandonando por sua tia. Em suas caminhadas ele conhece Jeremias, um burrinho triste. Desse encontro nasce uma verdadeira amizade, separada apenas pela ganância dos homens. Em busca do amigo perdido, Pedro conhece Francisco, jovem fraterno, possuidor do dom de falar com a natureza, e que tem como objetivo concluir a obra de sua igrejinha, pedra por pedra. Os dois então saem à procura de Jeremias, e nessa viagem o menino encontra-se com pássaros, estrelas, o sol e a lua.

Uso de playback é confuso 

Uma das qualidades do espetáculo é justamente como a direção de Suzy Quintela conduz a encenação. Tudo é suave, sem exageros; desde a sincera a narração dos atores, auxiliados por interessantes coreografias acrobáticas, encaixando-se harmonicamente no enredo, até as eficientes e poéticas resoluções cenográficas. Um dos grandes achados do espetáculo é a concepção da personagem burro, realizada com sensível respeito à figura de um animal em cena – aliás, uma atitude bastante coerente, devido à presença de Francisco na trama, o futuro São Francisco de Assis.

A escolha na linha de interpretação deste personagem faz com que o animal se comunique em cena apenas por interjeições onomatopéicas, e sem o uso de uma palavra sequer, auxiliado por um figurino criativo que acentua o uso simbólico de duas patas do burro, que produzem um efeito de uma teatralidade surpreendente. É muito agradável ver que existe um concito claro na construção cênica de todo o espetáculo, e também de podermos assistir em cena uma equipe apresentar-se com sinceridade, e desprovida de pretensão de criar novos conceitos para o teatro infantil. Contar uma história, com suavidade, sem atropelos, gritos e correrias, algo muito comum no teatro para crianças, já é um ótimo acerto. A cenografia e figurinos assinados por Olívia Cohen são funcionais e criativos. Além de uma carroça, a cena é composta de um belo ciclorama (pano de fundo) confeccionado em retalhos em tons dourados e marrom. Outro ponto alto do cenário é a concepção da cena da estrela; o efeito de varas com espelhinhos presos em fios de náilon é um elemento de beleza ímpar. A coreografia de Nelson Reis é extremamente integrada com o trabalho da preparadora de circo Emiliana Moraes, que juntos conseguem extrair dos atores a harmonia necessária nos movimentos em conjunto e nos números de dupla. A direção musical de Suzy Quintela é interessante, embora a questão do canto em cena e o uso de playback seja um dos problemas da encenação. O artifício atrapalha a fluidez da encenação e acentua as deficiências do elenco no canto, já que alguns atores cantam e outros apenas dublam, ficando desnivelado este tipo de procedimento. A iluminação é outro ponto fraco do espetáculo, sobretudo por alguns erros de operação. A peça recorre a um acender e apagar de luzes, uma repetição de pisca-pisca, sem a preocupação em criar efeitos diferenciados para cada uma das cenas.

O elenco, por sua vez, traz novidades e homogeneidade às interpretações. Todos os atores têm expressão leve, falam normalmente, sem fazer uso do exagero e do grito – outro recurso recorrente no teatro infantil. Destaque para a delicada interpretação de Luiz Felipe Carvalho para o burro, com bom uso de sua expressão corporal e bastante sensibilidade. Rafa Rodrigues divide-se entre vários papéis, entre eles o de Francisco, com sinceridade em todos eles. Rita Fernandes interpreta Pedro com expressividade. Max Magalhães é divertido em seus papéis e demonstra habilidade com a perna de pau. Alessandra Lima é uma figura doce como Nicoleta. Juliana Oliveira e Renato Souza são astutos como Corvina e Corbadio.