Matéria Publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 09.02.1982

Cadê a mãe desse teatro infantil que não toma conta dele?

Há um momento especialmente engraçado no espetáculo que o Grupo Abracadabra vem apresent
ando aos sábados e domingos no Circo do Arpoador. Trata-se de um sketch em que pedem a participação de algum espectador e um dos atores, vestido de criança, passa pelas piores situações possíveis no picadeiro. Primeiro, logo ao ser escolhido para participar do número, fica orgulhosíssimo como qualquer criança quando sobe no palco. Depois, diante do pânico de servir de tapete para alguém passar por cima de monociclo, ainda tenta fugir. No que se vê impedido, cercado, e ainda ouve reclamações do tipo: “Nós pedimos um menino educado! Cadê a mãe dele que nem toma conta direito?” Neste sketch quem ocupa realmente o picadeiro parece ser o teatro infantil carioca e uma busca ansiosa e autoritária da participação da criança que marca certos espetáculos. E não é só esse “teatro de participação” que se vê caricaturado pelo Grupo Abracadabra. É sobretudo a caça ao espectador infantil, para depois maltratá-lo incansavelmente, que aponta para o movimento teatral do ano passado e para o reduzido número de opções que se apresentam neste início de temporada aos frequentadores de teatro infantil.

Aumento de Peças

O que se viu em 1981? O que se viu nessa temporada de férias? Um amontoado de espetáculos fraquíssimos em luta por uma plateia restrita. E cuja tendência é tornar-se cada vez mais reduzida se tiver como opções apenas coisas do gênero Scooby Doo em Apuros, Tom e Jerry em Busca de um Casamento ou Os Três Porquinhos e o Lobo Mau. Ou então espetáculos até bem intencionados como O Jardim das Borboletas ou Viveiro de Pássaros, mas extremamente sem atrativos para um público infantil. Ou como O Menino Maluquinho, apoiado unicamente na exploração comercial do livro de Ziraldo do mesmo nome, sem que tal adaptação se revista de nenhuma novidade em termos teatrais. O que se tem visto no teatro infantil estes últimos anos é um aumento despropositado da quantidade de espetáculos (apenas no segundo semestre de 1981, cerca de 80), sem que tal aumento se faça acompanhar de um crescimento do número de espectadores ou de transformações significativas na linguagem teatral.

É significativo, por exemplo, o número de remontagens e adaptações. Parece que ao invés de se buscar uma dramaturgia nova ou soluções cênicas diferentes, a preferência recai sempre no já-visto, no mais-que-conhecido, na repetição do que se pensa ser um sucesso garantido.

Por isso qualquer livro infantil que venda bem corre o sério risco de sofrer alguma versão teatral talvez hedionda como a de Sandra na Terra do Antes a que se assistiu em 1981, talvez insossa como a de O Menino Maluquinho, talvez belíssima como a do Grupo Hombu para Ou Isso ou Aquilo, de Cecília Meireles. Talvez em 1982 se assista a mais umas cinco remontagens fracas de textos de Maria Clara Machado ou, pela milésima vez, algum grupo talvez resolva retomar Flicts. Jair Pinheiro, Roberto de Castro, já fizeram escola e possivelmente nos brindarão com seus habituais assassinatos dos contos de fada mais conhecidos. E novos grupos possivelmente surgirão reproduzindo o que quer que esteja em moda, para depois trocar rapidamente desde que surja algo mais novo. O que explica, dentre outras coisas, a quantidade de espetáculos utilizando bonecos em 1979, número que se viu bastante reduzido ano passado. Usavam-se marionetes e os bonecos mais diversos para tudo, mesmo que não tivessem a menor utilidade em cena. Apenas porque parecia de bom tom. Agora, subitamente, o teatro de bonecos é posto de lado como uma lata velha, como uma linguagem que se consumiu sem pensar muito e depois não se sabe mais o que fazer dela. Coisa bastante lamentável e que é bem capaz de acontecer também com as adaptações. Possivelmente daqui a uns dois anos estarão em desuso e a novidade será outra, sem que se crie uma maior organicidade entre as diversas linguagens que parecem apenas sobrevoar o teatro infantil. Sem que nele adquiram personalidade própria e não apenas o ar de modas que se sucedem rapidissimamente.

Alentos

Se, no entanto, os últimos anos não vêm sendo muito bom para o teatro infantil nem em termos de público, nem de qualidade, isso não tem nada de apocalíptico também. Não se está em absoluto clamando tragicamente: “O teatro infantil cresceu, cresceu, fez boom e morreu!”.

Basta lembrar que este ano, só em termos de dramaturgia para crianças, firmaram-se nomes como Tonio Carvalho, vencedor do Troféu Mambembe 81 para autor; Ricardo Maurício, com Sonhe com os Ratinhos; André Felipe Mauro, com Vira Avesso; Paulo César Coutinho, com Dom Quixote e Te Amo Amazônia; Alice Reis, com Uma Pitada de Sorte e Cinco Mil Passos.

Houve igualmente alguns espetáculos excelentes como Os Cigarras e Os Formigas no Tablado; Brincando com Fogo com o Grupo Manhas e Manias; Ou Isto ou Aquilo, com o Grupo Hombu; O Anel e a Rosa com o Grupo Tapa, As Três Luas de Junho e Uma de Julho com o Teatro Feliz-Meu-Bem; Vira Avesso com o Grupo Além da Lua; Um Telefonema para o Japão com o Grupo Lua Me Dá Colo, além de Adivinhe o Que É, com o MPB-4, e Cantos de Trabalho, com o Bloco da Palhoça, que marcaram uma tendência cada vez mais forte no teatro infantil: o show musical e a ligação do teatro com o disco infantil, capaz de “vender” tanto quanto qualquer produto destinado ao mercado adulto. Como se pode perceber com o sucesso de Os Saltimbancos, A Arca de Noé ou Adivinha o Que É.

Estilo de Linguagem

Também em termos de linguagem cênica o ano que passou não foi um marasmo completo. Assistiu-se à continuação de trabalhos significativos com os do Grupo Hombu e do Tablado, assim como ao sopro inovador de um grupo como o Manhas e Manias. Sopro que parece associar Brincando com Fogo, o espetáculo apresentado pelo grupo em 81 e em temporada no Circo Voador aos sábados e domingos às 16h, a duas das montagens mais importantes da temporada passada para público adulto: Poleiro dos Anjos e O Percevejo. Como no Poleiro, em Brincando com Fogo o Grupo Manhas e Manias obriga o espectador a empreender uma viagem crítica em direção a seu próprio passado, a sua vida familiar e escolar. Como em O Percevejo, misturam-se no espetáculo do Manhas e Manias teatro e circo. E utiliza-se a linguagem circense para olhar criticamente a representação e a “seriedade” teatrais. No lugar do “espetáculo infalível”, da “produção impecável, do “limpinho”, vão estar o “pastelão” e imprevisibilidade do circo. Ao invés de um “padrão de qualidade” europeu, o que se vem tentando estes últimos anos é retomar uma linha de interpretação cujas origens estão na “revista”, numa “Dulcina”, popular e circense que fora meio jogado fora do que se convencionou chamar “teatro de qualidade”. Numa mistura  de Asdrubal Trouxe o Trombone, com seu olhar crítico para a classe média carioca, e de “habilidade e técnica circense” é que podem ser vistos grupos como o Manhas e Manias, o Abracadabra, que converteram o teatro infantil em campo de experimentação para um movimento altamente inovador no teatro brasileiro. E que parece retomar a sua história estabelecendo novos marcos.

Colocando de lado a linha Os Comediantes e TBC e retomando a improvisação, o humor popular, o circo, em belos espetáculos como Brincando com Fogo e O Menor Circo do Mundo, ambos em temporada no Circo Voador, respectivamente às 16h e às 17h30m.