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Aprendi logo, desde cedo – e foi isso que me fascinou – que ter a criança como interlocutora, era como navegar num território de extrema liberdade e de alta vigilância: no território inaugurador de novos mundos, num campo fundador de imaginários em formação – como uma espécie de iniciação.

O ato de criar para a criança passa por um registro muito particular: não há que convencê-la de nada, apenas conquistá-la, afetivamente. Um território de afetos – entendendo-se o afeto não seu sentido de amor romântico, mas enquanto afecção – um território de pedras de toque que atingem o entendimento pela emoção.

Assim se por alguma razão, de qualquer ordem – seja da pura curiosidade vital e pessoal do cenógrafo , ou de determinações da direção ou da dramaturgia – decide-se que o mundo a ser inventado não tem a menor correspondência com o real , como uma borboleta azul ter apenas uma asa, é possível efetuá-lo em celebração, muito mais do que uma mera convenção.

A partir da experiência no palco, se íntegra e afetiva, haverá para sempre um lugar no mundo onde as borboletas só terão uma asa. Ainda que a criança confronte, questione e se surpreenda, esta borboleta única e bizarra, existirá eternamente, habitando o seu afeto, a sua memória, para sempre.

Todos esses aspectos são pertinentes, “lugares comuns” de qualquer pensamento sobre a criação artística e para qualquer espectador – de qualquer idade. Contudo, a troca com o mundo adulto faz-se por um diálogo que parte de referencias e pontos de vista formados, de estruturas e fortes condicionamentos – muitas questões de ordem racional ou ideológicas – e a efetuação desta liberdade se encontra na ordem da ruptura; enquanto que com a criança está-se na ordem da constituição, na ordem da pedagogia lúdica e da celebração iniciática da vida.

Isto aprendi na minha própria experiência – ao assistir Pluft, o Fantasminha nos meus prováveis 10 anos de idade – quando diante do cenário surrealista lilás de Juarez Machado, para minha surpresa inicial , não encontrei as pegajosas teias de aranha e o ambiente previsivelmente soturno dos fantasmas. No entanto, aquele imagem bem construída pelo espetáculo adquiriu um espaço rapidamente em meu afeto, e apesar da surpresa inicial, encantada pela evolução da história no palco, não havia mais lugar para dúvidas ou qualquer tipo de angústia. Acolhi aquele mundo às avessas, alegremente- na casa clara como uma praia , habitava o meu pequeno herói , e desta imagem nunca mais esqueci. Das outras casas de fantasmas que encontrei pela vida , todas se confundiram como uma única. A de Juarez Machado ficou para sempre , singular e viva , tornando Pluft, por mais essa razão, um fantasminha muito especial. Mais tarde , quando tive que criar o meu primeiro cenário infantil, me lembrei da casa do Pluft , e parti para a invenção segura pela certeza infantil, de que tudo era possível e de muitas maneiras.

Essa lição me ficou para sempre.

Pensar assim traz a liberdade plena, e muita responsabilidade. Dá sentido ao nosso gesto, e compromisso com o futuro.

Faz compreender o sentido da teatralidade de forma muito leve.

Ao criar um cenário nestas condições, desaparece definitivamente o compromisso com qualquer linguagem , restando apenas a certeza de que o que inventamos poderá ser eterno. Assim, não penso se deve ser colorido, excitante, divertido, ou “criativo”, ter qualquer qualidade estética prévia, e lanço mão de um terrível “clichê ”, em que acredito plenamente: consulto o meu prazer infantil, o que resta de criança na minha alma.

Não há regras para a criação de uma imagem visual, apenas a sensibilidade de ajudar a contar uma história , segundo as condições do momento – em sintonia com as pessoas envolvidas na criação e a partir de meu estado pessoal. Para isso me torno camaleônica, sem estilo – compradora de sonhos , do autor, do diretor ; produtora de espaços e lugares para os personagens que vivem nos atores ; uma realizadora para o produtor. Tudo sempre poderá acontecer, e se for bem acontecido, certamente estar-se-a lançando verdadeiramente algumas semente ou ovos no futuro.

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Lídia Kosovski
Cenógrafa e Arquiteta