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Em tempo de modernidade, as atenções se direcionam para a evolução tecnológica. O pensamento futurista apanha toda a área sensorial do ser humano, reduzindo toda possibilidade sensível, poética e, principalmente, humanista de sentir e ler o mundo contemporâneo. Nesse fútil olhar o papel é trocado por teclados e inserido num novo plano textual palpável. As artes se escalam no plano secundário e a arte popular num patamar inenarrável (quando consegue ser considerada arte), pois as prioridades do novo mundo são bem diferentes, desvalorizando nossas verdadeiras riquezas, que são abocanhadas pelo gigantesco sistema capitalista, desconsiderando toda e qualquer forma de expressão artística. É nesse momento que a classificação das artes torna-se excludente, quando numeradas em: erudita, popular, moderna… (é verdade que essa discussão daria “pano para muita manga”). Primeiro grande erro, pois, sendo uma ciência que mais dialoga com os sentimentos, torna-se tão visceral, por seguir um caminho tão poético até o coração. Claro que para construir é preciso desconstruir, antes desmembrando os sentidos vitais; é preciso pensar (o que se está fazendo aqui? Ou que já se fez?).

Por isso que a arte popular é a mais pura, pois não está minada pela técnica acadêmica, uma vez que seus traços são soltos e isso é que a torna peculiar, que transpõe inconscientemente seus mitos e crenças. E é dessa fonte que surgiram os bonecos gigantes de Olinda-PE, exatamente com ideal de expressão, tornando-se uma das mais significativas manifestações da arte popular, cujo fundamental é a conotação alegórica. Mas não é apenas essa a sua função, de forma que muitos registros comprovam as participações sociais, políticas e religiosas dos bonecos (maior representatividade não teríamos).

Introduzidos e acompanhados por uma orquestra de frevo, quando se ouve o “tam, nam, nam, nam” das cornetas, a alegria toma conta do povo sofredor de injustiças sociais e o sentimento lúdico vem à tona: um fervor, um desejo de “pular”, esquecer todos os problemas e se jogar nos gigantes braços daquele protetor. Mas nem tudo é poesia. Como em todos os lugares, existe sempre uma batalha para conseguir apoio e patrocínio para a confecção dos bonecos. Eles dependem de materiais como: EPS (isopor), papel, fibra, madeira, tecido, tinta, espuma e outros. Simples no seu material, mas rico na sua função, verdade é que não existe nenhuma proposta cênica, nem técnica de manipulação; tudo muito mais simples do que se imagina. Qualquer pessoa pode entrar e sair animando a multidão. Suas aparições estão relacionadas com a alegria, embora em outros tempos os bonecos não tinham tanta influência regional, nacional e/ou internacional.

Essa história começou com o primeiro boneco gigante e clube “Homem da Meia Noite”, que ganhou esse nome por sair às ruas à zero hora do sábado de Carnaval. Contam os mais antigos e de “boca miúda”, que o nome deve-se ao seguinte fato: todo dia, exatamente à meia-noite, um homem bonitão fazia o mesmo trajeto de volta para casa na Rua do Bonsucesso. Algum tempo depois, sua rotina fora descoberta pelas donzelas, que o aguardavam espionando, todas as noites, por trás das frestas de janelas e portas, sempre naquele horário. Essa história popular é uma das muitas que tentam explicar o nome do primeiro boneco gigante de Olinda.

O boneco, hoje com 71 anos, foi criado e confeccionado por Benedito da Silva, um dos fundadores do clube carnavalesco que ganhou o nome de seu boneco. Fundado em 1932, o clube “O Homem da Meia-Noite” é uma das mais famosas agremiações de Olinda. Devido a questões políticas, o bloco hoje nada mais é do que o gigantesco boneco e o estandarte, acompanhados por uma orquestra de frevos, arrastando multidões pelas enfeitadas ladeiras históricas de Olinda. Mas, nem sempre foi assim.

Já houve épocas em que o clube desfilava com carros alegóricos, enredo previamente definido e fantasias luxuosas, levando às ruas dezenas de participantes.

O clube “O Homem da Meia-Noite” possui sede própria, localizada na Rua do Bonsucesso, e desde a sua fundação mantém a tradição de desfilar seguindo exatamente o mesmo percurso realizado pelo homem mencionado na história anterior.

O boneco gigante tem a aparência física do seu construtor, Benedito Bernardino da Silva, que também é compositor do hino do clube:

“Lá vem o Homem da Meia-Noite
Vem pelas ruas a passear
A fantasia é verde e branca
Para brincar o Carnaval.”

O segundo e terceiro bonecos foram: “A Mulher do Meio-Dia” (1967), esposa do “Homem da Meia Noite”, e a “Menina da Tarde” (1974), filha do casal. Já o quarto boneco teve como criador o pernambucano Sílvio Romero Botelho de Almeida, que, além de artista plástico, bonequeiro e projetista, foi um dos maiores divulgadores dos bonecos gigantes de Olinda. Em 1976, o seu primeiro boneco para a agremiação, “Menino da Tarde”, também nome do seu boneco, atinge hoje a marca de mais de 450 bonecos gigantes. É muito importante destacar seu nome, pela persistência em manter viva uma cultura e por acreditar nela. Sílvio Botelho nasceu em 1956 em Olinda, onde, ainda jovem, começou a esculpir na madeira, gesso e barro. Depois, passou a trabalhar como ajudante de Roque Fogueteiro (um fabricante de fogos de artifícios que também confeccionava máscaras carnavalescas), com quem aprendeu a arte de modelar os gigantes bonecos do Carnaval de Olinda.

Botelho ganhou fama depois que conseguiu desenvolver uma técnica de confecção onde os bonecos produzidos ficavam mais leves que os tradicionais, sem, no entanto, descaracterizá-los. Possui hoje um espaço de exibição permanente “A Casa dos Bonecos Gigantes”, a qual sempre é apreciada por turistas, numa média de 200 por dia em alta temporada. Vizinho de Silvio Botelho está “O Museu do Mamulengo”, fundado em 1994 e que possui um acervo com mais de 1.200 peças, outra opção para se conhecer a linguagem dos bonecos populares.

Atualmente, Sílvio Botelho é responsável pelo espetáculo que acontece a cada carnaval pelo décimo ano consecutivo, com o encontro de bonecos gigantes na manhã da terça-feira. Um verdadeiro show de caricaturas gigantes para os olhos e alegria de milhares de foliões que acompanham o desfile, fazendo a história do Carnaval pernambucano.

Oh linda! Olinda das ladeiras inclinadas, das ruas enfeitadas, dos bonecos gigantes e do povo sedutor e acolhedor. Olinda do frevo, Maracatu, do Museu do Mamulengo, da Dona Selma do Coco, dos blocos populares. Olinda do Carnaval popular, onde o povo participa e se manifesta, representando com seus ritmos o cotidiano do povo pernambucano. Olinda, que tem como cartão de visita os bonecos gigantes, hoje personagens fundamentais da cultura nordestina. Medindo quase três metros de altura, pesando aproximadamente 13 quilos, eles dançam pelas ruas acompanhados de orquestras e arrastando multidões. Os bonecos representam personalidades da cultura brasileira (artistas, políticos, personagens fantásticos). A cada ano mais e mais bonecos são criados, dando um colorido exótico ao Carnaval de Olinda. A aparição dos bonecos não tem nenhuma proposta cênica, ao contrário, eles vivem no sentido de trazer alegria. Não existe técnica de manipulação, pois qualquer pessoa pode entrar nele e sair animando multidões. O que o torna especial é sua peculiaridade; seu objetivo é que o torna comum.

Não serei redundante tentando teorizar o teatro de bonecos. Essa definição é ampla e abrange vários gêneros, isso outras pessoas já fazem muito bem. Prefiro falar dos bonecos de Olinda, não só por ter vindo daquela cultura, mas, e principalmente, por ter desenvolvido projetos de pesquisa na área. Espero que tenham sido proveitosas as imagens e os registros aqui mencionados, pois dar dimensão a algo que não tem dimensão não é tarefa fácil. Reforço o registro e o convite para uma visita a Olinda, para conhecer sua cultura, ou melhor, para conhecer nossa cultura.

“Olinda quero cantar a ti essa canção
teus coqueirais o teu sol o teu mar
faz vibrar meu coração de amor a sonhar
minha Olinda sem igual salve o teu Carnaval”
                                                                                  Clídio Nigro / Clóvis Vieira

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Bibliografia

SANTOS, Fernando Gonçalves. Mamulengo: um povo em forma de boneco. Rio de Janeiro: MEC/FUNARTE, 1977
LADEIRA, Idaline e CALDAS, Sarah. Fantoche e Cia. São Paulo: Scipione, 1993
FILHO, Carlos da Fonte. Espetáculos populares de Pernambuco. Recife: Bagaço, 1999

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Fábio Henrique Nunes
Figurinista, Pernambuco

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Obs.
Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 7º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (2004)