O elenco de Arca de Noé, em temporada no Teatro dos Quatro

Matéria publicada no Jornal do Brasil
Por Flora Sussekind – Rio de Janeiro – 13.09.1985

Barra 

Balanço dos Espetáculos em Cartaz

O panorama atual de teatro infantil chama a atenção para a disseminação de diferentes modos de produção e para a consequente coexistência, às vezes pacífica, às vezes nem tanto, de opções estéticas bastante conflitantes em meio aos quase quarenta espetáculos que se oferecem ao público todo fim de semana.

Há desde superproduções patrocinadas como Plim, Canecão, a espetáculos-garotos-propaganda como A Comédia dos Smurfs, Circo Tihany, ou O Que é Que Tem Dentro?, Parque Lage; a exibições deslavadas de puxa-saquismo , como as remontagens de adaptações de livros de Ziraldo, cuja estreia, pouco sutil, coincidiu com sua nomeação para a Funarte; a montagens em que se opta por pequenos recursos, produção cooperativada e bons resultados como em A Idade do Sonho, T. Cacilda Becker, ou Ioupiii, T. da Cidade; a trabalhos em parte financiados por instituições culturais , como Beto e Teca, Planetário, fruto de uma sugestão do Instituto Goethe; a esforços isolados como os de Bia Lessa, apoiada pelo Sesc, em Ensaio nº 2, Roberto Bontempo em Tom Sawyer, T. Vanucci ou do Grupo Tapa em Pinóquio, T. Ipanema; ou ao trabalho de médios empresários como Elvira Rocha com sua Arca de Noé, Teatro dos 4, hoje meio sufocada pela entrada de grandes empresários e patrocínios em cena, injeção de dinheiro que ocasionou súbita mudança estético-ideológica em muitos profissionais e espetáculos de teatro infantil.

Porque nos últimos meses inúmeros “filhos do Asdrúbal” têm se transformado, cheios de alegria, em afilhados da Shell ou filhos adotivos de Marcos Lázaro. O que talvez não fosse tão problemático se tal virada implicasse apenas a redução de horizontes artísticos pessoais, mas a história é outra. Não é à toa que, nessa paixão pouco crítica pela rápida profissionalização, pelo papel de garoto-propaganda desta ou daquela empresa, pela baixa de qualidade nos próprios produtos, haja vista a diferença entre A Comédia dos Smurfs e Sapomorfose ou entre Dito e Feito e Os Monstrengos do Rei, quem apareça para o meio teatral como vilão seja exatamente quem tenta obrigá-lo a avaliar as próprias opções estético-ideológicas.

Quando se opta mesmo pelo mercado e se dá a mão às grandes empresas, achando bom, cria-se imediatamente uma figura fictícia de oponente: o crítico. Porque os patrões não, estes são ótimos. Dão ótimas condições de trabalho. Pouco importa se o espetáculo que se montou nada mais é do que puro merchandising. Veja-se o caso dos Smurfs. O espetáculo, verdadeiro triunfo do Mesmo, reprodução do espetáculo argentino, por sua vez reprodução do europeu, por sua vez reprodução do israelense, não funciona. Isto do ponto de vista artístico, é claro. Do ponto de vista comercial, é uma espécie de gêmeo de um cartaz que se vê em qualquer banca de jornal: revele o seu filme e troque por um smurf. Trata-se de disseminar os personagens e de ganhar dinheiro. Só isso. E isso é ruim? A rigor não. Desde que se tenha consciência de que o que se está fazendo é só isso.

O problema é que nosso meio teatral, mais acostumado às fofocas de bar do que à discussão intelectual, poucas vezes põe em questão os próprios projetos estéticos ou as próprias opções profissionais. E vem se transformando crescentemente, desde que se começou a ganhar um pouco mais via tv ou via teatro, numa espécie de celeiro de carreiristas mais ou menos talentosos. E que, para ocultar a própria falta de um projeto artístico mais consistente citam o nobre Brecht de orelhada até onde podem. “O mais importante é o estômago, já dizia o velho Brecht”, é o que costumam dizer. “e além do mais, quem são esses jornalistas, esses assalariados de uma empresa, para falar?”, indagam na defensiva os nossos Kids Supérfluos teatrais. Naturalmente não conversam com assalariados. Só com editores ou patrões.

E confundindo Brecht com algum youpie, não parecem perceber a amarga ironia de declarações como aquela. Ou de poemas como Hollywood, onde em quatro versos apenas põe em xeque o seu próprio enlace eventual com a indústria cultural: “Para ganhar o pão, cada manhã/vou ao mercado onde se compram mentiras. Cheio de esperança/ponho-me na fila dos vendedores”. A diferença é a consciência crítica. É não pensar que, ao fazer Os Smurfs se está fazendo grande coisa. Não que não se possa sobreviver. Mas mesmo quando se aceitam patrocínios é possível fazer coisas do nível de um Grande e Pequeno, mesmo quando se entra na mídia é possível fazer trabalhos como Morte ou S.A.M. realizados pela equipe do Olhar Eletrônico. Ao contrário do que vem ocorrendo no atual enlace do teatro infantil com grandes empresários ou com patrocínios de empresas, é possível fazer bem mais do que um “plim” e voar bem mais alto do que smurfs. Até quando existe este enlace.