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Resumo

(01) O texto focaliza algumas contribuições de Peter Slade e de Viola Spolin para os estudos relacionados ao jogo, destacando as categorias que cada autor assinalou no trabalho de compreendê-lo e sistematizá-lo. Aborda também a possibilidade de o jogo evoluir das categorias mais simples para as mais complexas, resultando em experiências significativas com a linguagem teatral.

Palavras-chave

Jogo teatral, jogo dramático, expressão dramática.

1. Considerações iniciais

A relação entre teatro e jogo é estreita, pois muitos são os diretores que partem da prática desta atividade para conceber seus espetáculos. Segundo Koudela (1992, p.148), o processo de trabalho com jogos “visa efetivar a passagem do teatro concebido como ilusão para o teatro concebido como realidade cênica”. Tão estreita quanto a relação teatro-jogo é a relação entre jogo e vida. Essa dependência fica evidente, quando Peter Slade trata da ausência do ato de jogar na vida do indivíduo:

A falta de jogo pode significar uma parte de si mesmo permanentemente perdida. É esta parte desconhecida, não criada, do próprio eu, esse elo perdido, que pode ser a causa de muitas dificuldades e incertezas nos anos vindouros (SLADE, 1978, p.20).

Tanto no teatro quanto na vida, o jogo constitui um elemento fundador. Diversos estudiosos do teatro e das áreas do conhecimento relacionadas a ele se dedicaram ao estudo do jogo. A partir da década de cinqüenta, do século passado, surgiram muitos trabalhos a respeito do tema e também diversas propostas educacionais que buscam nele a sua fundamentação. Nessa profusão de psicólogos, arte-educadores, diretores teatrais e professores que já contribuíram para uma discussão séria sobre o tema, surgiram diversos pensamentos que, embora se nutrissem de algumas fontes comuns, deram ao tema enfoques distintos. Desse modo, a expressão jogo, que designa a criação e a improvisação coletiva, passou a receber diversos complementos que acrescentavam a ela o sentido específico com que cada estudioso a designava.

2. Peter Slade

Richard Courtney em Jogo, Teatro e Pensamento: as bases intelectuais do teatro na educação, aponta Slade como precursor do teatro criativo1 (02). Nos seus estudos sobre o jogo, Slade (1978, p.17) propõe a terminologia jogo dramático infantil e assim a define: “é uma forma de arte por direito próprio, não é uma atividade inventada por alguém, mas sim o comportamento real dos seres humanos” Segundo ele, o jogo dramático “é uma parte vital da vida jovem. Não é uma atividade de ócio, mas antes a maneira de a criança pensar, comprovar, relaxar, trabalhar, lembrar, ousar, experimentar, criar e absorver” (SLADE, 1978, p.17).

O autor atribui à ação de jogar (no sentido de brincar, fazer de conta) o impulso primordial, a raiz do jogo dramático. A brincadeira pode ser a de representar o jogo e essa brincadeira teatral infantil pode apresentar ocasiões de caracterização e situação emocional tão nítidas que a fazem ascender para o jogo dramático infantil. As categorias que Slade propõe não estão de acordo com a distinção entre jogo realista (onde a situação a ser encenada é pré-estabelecida pelo orientador, seja ele o professor ou o diretor teatral) e jogo imaginativo (atividade na qual a encenação é fruto da imaginação e criatividade do indivíduo e não conta com qualquer interferência externa), como estabelecem alguns teóricos. Na sua opinião,

[…] o jogo (e certamente nos estágios mais precoces) é tão fluído, contendo a qualquer momento experiências da vida cotidiana exterior e da vida imaginativa interior, que se torna discutível se um deveria ser encarado como uma atividade distinta do outro. É importante, naturalmente que a diferença seja compreendida, mas a distinção pertence mais ao intelecto do que ao jogo propriamente dito. A criança sadia se desenvolve para a realidade à medida que vai ganhando experiência de vida (SLADE, 1978, p. 19).

O jogo realista não é refutado por Slade; pelo contrário, é sugerido por ele dentre as dinâmicas e exercícios que descreve e propõe. O que ele não quer é que se efetive uma divisão entre esse e o jogo imaginário, uma vez que, na prática, ambos dificilmente são dissociados. Desse modo, entendendo a prática do jogo como encaminhamento fundamental para a sua teorização, o autor propõe a distinção entre jogo projetado e jogo pessoal. O primeiro caso é “mais evidente nos estágios mais precoces da criança pequena, que ainda não está pronta para usar seu corpo totalmente” (SLADE, 1978, p. 19). Por conta disso, no jogo projetado, o corpo é usado com algumas restrições, ao contrário da mente, que é amplamente ativada. Há uma tendência à quietude e a principal parte do corpo utilizada são as mãos, pois essa categoria conta com a presença de objetos ou brinquedos que “ou assumem caracteres da mente ou se tornam parte do local […] onde o drama acontece” (SLADE, 1978, p. 19).

O jogo pessoal se manifesta aproximadamente aos cinco anos de idade e se intensifica de acordo com o controle que a criança exerce sobre o corpo. De acordo com Slade “é o drama óbvio: a pessoa inteira ou o ‘eu’ total é usado. Ele se caracteriza por movimento e notamos a dança entrando e a experiência de ser coisas ou pessoas” (1978, p. 19). Nota-se, nesse caso, a disposição da criança para o barulho e para o esforço físico.
Quanto à influência do jogo na vida da pessoa, podemos esperar, segundo Slade, contribuições específicas de cada categoria. Do jogo projetado pode-se ter, como provável, o desenvolvimento de atividades relacionadas à arte, jogos e esportes calmos, bem como a habilidade em ler e escrever. Já do jogo pessoal, espera-se contribuição na propagação das mais variadas formas de atuação, tais como esportes que envolvem ação, liderança e controle pessoal.

3. Viola Spolin

No rol dos autores que se propuseram a estudar o jogo, Viola Spolin tem lugar de destaque. A autora dedicou sua carreira de professora de teatro à sistematização de uma proposta para o ensino desta arte em diversos e opostos contextos. Sua definição de jogo articula os princípios que destacamos como fundamentais para o desenvolvimento da arte dramática, como envolvimento, estimulação da criatividade, liberdade criadora e, principalmente, a oportunidade de experimentar, conforme podemos conferir:

O jogo é uma forma natural de grupos que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar. As habilidades são desenvolvidas no próprio momento em que a pessoa está jogando, divertindo-se ao máximo e recebendo toda a estimulação que o jogo tem para oferecer – é este o exato momento em que ela está verdadeiramente aberta. (SPOLIN, 1992, p. 4.).

A experiência é, para Spolin (1992, p. 4), resultado do jogo, e, considerando qualquer pessoa capaz de experimentar, ela afasta do seu programa de oficinas qualquer suposição que pretenda relacionar o jogo à presença ou à ausência do talento:

Todas as pessoas são capazes de atuar no palco. Todas as pessoas são capazes de improvisar. As pessoas que desejarem são capazes de jogar e aprender a ter valor no palco. Aprendemos através da experiência, e ninguém ensina nada a ninguém. Isto é válido tanto para a criança que se movimenta inicialmente chutando o ar, engatinhando e depois andando, como para o cientista com suas equações. Se o ambiente permitir, pode-se aprender qualquer coisa, e se o indivíduo permitir, o ambiente lhe ensinará tudo que ele tem para ensinar. “Talento” ou “falta de talento” tem muito pouco a ver com isso (SPOLIN, 1992, p. 4).

Na perspectiva da autora, a experiência provém da interação entre indivíduo e ambiente e não há limites para ela ensinar a quem se disponha a jogar. Quanto ao tratamento que Spolin dá ao jogo, no sentido de adequá-lo a uma das categorias já citadas, inferimos que o jogo realista, ligado à vida exterior da criança, também conhecido como jogo de regras, por estabelecer, de antemão, os passos elementares da atividade a ser desenvolvida, é o princípio de seus exercícios e, desse modo, a palavra jogo, a partir de Spolin, passa a receber o complemento teatral.

Analisando as atividades que a autora propõe em seu treinamento, verificamos tratar-se de propostas esquematizadas ou pré-esquematizadas, diferenciando-se do faz-de-conta, no seu sentido natural (jogo imaginário). É dentro de um espaço e de uma cena determinados e, a partir de personagens pré-estabelecidas, que o jogo teatral se realiza. Por vezes, um ou dois desses elementos podem faltar, deixando espaço para a elaboração coletiva dos mesmos; em suma, é propondo alguns limites para a improvisação que Spolin concebe os jogos teatrais, tornando-os uma atividade de regras explícitas. Outra característica dos exercícios de Spolin é que o grupo que os pratica pode ser dividido em dois times: sujeitos que jogam e sujeitos que observam, procedimento que leva o aluno a transitar por um binômio fundamental da atividade teatral: atores e platéia.

Colocados frente a frente, percebemos que o jogo dramático rearticula as características do jogo imaginativo e o jogo teatral às características do jogo realista. A diferença fundamental entre essas categorias é que jogos dramáticos ou imaginativos possuem como princípio a livre articulação de idéias, deixando os alunos ou atores criarem e desenvolverem, por conta, as atividades. Os jogos teatrais ou realistas, por sua vez, distanciam-se dos demais por estabelecerem algumas normas e regras, tendo em vista alguns encaminhamentos pré-estabelecidos para o desenvolvimento das atividades.

4. A evolução do jogo

A par desses conceitos, salientamos uma característica dos jogos que termina por justificar a existência dessas várias categorias e reafirma a importância de cada uma delas no contexto escolar: a possibilidade de os jogos evoluírem e, numa perspectiva crescente, resultarem em dinâmicas e encenações que, de fato, constituam uma experiência significativa com a linguagem teatral. Essa idéia é levantada pelos PCN (Ensino de quinta a oitava série): “O jogo teatral é um jogo de construção em que a consciência do ‘como se’ é gradativamente trabalhada, em direção à articulação de uma linguagem artística, o teatro” (BRASIL, 1998, p. 88) 2 (03).

O documento salienta o caráter progressivo que permeia o jogo, fazendo com que o aluno caminhe, a partir dele, para a compreensão e manipulação da linguagem teatral. Essa possibilidade também é prevista pelos PCN (Ensino de primeira a quarta série):

A dramatização acompanha o desenvolvimento da criança como uma manifestação espontânea, assumindo feições e funções diversas, sem perder jamais o caráter de interação e de promoção de equilíbrio entre ela e meio ambiente. Essa atividade evolui do jogo espontâneo [jogo dramático] para o jogo de regras [jogo teatral], do individual para o coletivo (BRASIL, 1998, p. 88).

De acordo com o referido texto, salientamos que a evolução do jogo, das categorias mais simples para as mais complexas, é inerente à criança, ou seja, ela encontra correspondência no seu desenvolvimento. Nesse sentido Koudela (1992, p.148.) assegura que “a mesma revolução que ocorre com a criança em desenvolvimento pode ser acompanhada no processo de crescimento do indivíduo no palco.” Assim, a dramatização funciona como mediadora entre a criança e o mundo, possibilitando a interação e o equilíbrio necessários para um desenvolvimento sadio.

O crescimento sucessivo das modalidades do jogo também é notificado por Courtney: “Na medida em que a criança vai se tornando mais velha, ela gradualmente necessita de uma platéia, assim há um tipo de jogo para cada idade determinada, e a educação deve propiciar-lhe um desenvolvimento da experiência dramática” (COURTNEY, 2003, p. 47).

Ao sugerir a necessidade de platéia para a criança, o autor está supondo a mudança do jogo dramático para o jogo teatral e também para estágios mais avançados, como a encenação teatral. Essa idéia também é assimilada por Marie Dienesch (In: REVERBEL, 1988, p. 109), que afirma que “o Jogo Dramático constitui-se na melhor e indispensável preparação ao teatro para os alunos que, especialmente dotados, poderão abordar uma forma de arte mais complexa e mais elaborada”.

A passagem de um estágio a outro, ao longo do desenvolvimento intelectual da criança, é explicada por Koudela como

[…] uma transição muito gradativa, que envolve o problema de tornar manifesto o gesto espontâneo e depois levar a criança à decodificação do seu significado, até que ela o utilize conscientemente, para estabelecer o processo de comunicação com a platéia (KOUDELA, 1992, p. 45).

A autora caracteriza a mudança de uma categoria à outra na medida em que a expressão da pura imaginação passa a ter um sentido consciente de comunicação, traçando, assim, a diferença essencial aos dois níveis do jogo.

5. Conclusão: jogo e teatro na escola

A evolução do jogo é também focalizada pela diretora e professora de teatro Olga Reverbel, que encaminha suas considerações para o campo escolar, apontando o jogo como uma forma de expressão que pode acompanhar o aluno em qualquer estágio:

O jogo dramático é uma atividade rica que pode ser aplicada em qualquer série, da pré-escola ao 2º grau […]. O que varia é o tema do jogo, que tende a tornar-se progressivamente mais complexo, acompanhando a faixa etária dos participantes. (REVERBEL, 1988, p. 112)

O jogo deve ser cultivado, portanto, como um modo de fortalecer o processo de expressão, que é intrínseco ao ser humano. Construindo representações, indiferente do nível ou da categoria do jogo, o aluno registra e lê o mundo que está ao seu redor. Tal oportunidade deve ser deve ser garantida à criança desde a mais terna infância, e assegurada quando a mesma entra na escola, conforme registram os PCN (Ensino de primeira a quarta série):

A criança, ao começar a freqüentar a escola, possui a capacidade da teatralidade como um potencial e como uma prática espontânea vivenciada através dos jogos de faz-de-conta. Cabe à escola estar atenta ao desenvolvimento do jogo dramatizado oferecendo condições para o exercício consciente e eficaz, para aquisição e ordenação progressiva da linguagem dramática. Deve tornar consciente as suas possibilidades, sem a perda da espontaneidade lúdica e criativa que é característica da criança ao ingressar na escola (BRASIL, 1997, p. 84).

Por meio do jogo e do caminho consciente por suas etapas e categorias, o indivíduo pode chegar ao conhecimento e à utilização da linguagem teatral. Na verdade, a prática do jogo não seria uma oportunidade que a escola estaria oferecendo, mas sim uma garantia do desenvolvimento de aspectos corporais e intelectuais que estão, desde muito cedo, latentes no indivíduo como que esperando para serem desenvolvidos.

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Bibliografia

BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. PCN: Arte. (Educação Fundamental – primeira à quarta série). Brasília, 1997
________. Ministério da Educação e do Desporto. PCN: Arte. (Educação Fundamental – quinta à oitava série). Brasília, 1998
COURTNEY, R. Jogo, Teatro e Pensamento: as bases intelectuais do teatro na educação. São Paulo: Perspectiva, 2003
KOUDELA, I.D. Jogos teatrais. São Paulo: Perspectiva, 1992
REVERBEL, O. Um caminho do teatro na escola. São Paulo: Scipione, 1988
SLADE, P. O jogo dramático infantil. São Paulo: Summus, 1978
SPOLIN, V. Improvisação para o teatro. São Paulo: Perspectiva, 1992

Notas

(01) Uma versão simplificada deste artigo foi publicada no formato de uma subseção na obra GRAZIOLI, Fabiano Tadeu. Teatro de se ler: o texto teatral e a formação de leitor. Passo Fundo: UPF Editora, 2007.
(02) De acordo com Courtney (2003, p. 46) é a atividade teatral com suas características intrínsecas e procedimentos específicos, como uma atividade que não procura fora de si mesma justificativas para sua existência.
(03) É importante salientar que, embora utilize a nomenclatura de Spolin – jogo teatral – este documento não está se referindo à categoria desenvolvida pela autora, ou seja, a categoria análoga ao jogo de regras.

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Fabiano Tadeu Grazioli
Mestre em Letras – Estudos Literários (Leitura e Formação do Leitor) pela Universidade de Passo Fundo/RS (2007). Especialista em Metodologia do Ensino da Literatura pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – Campus de Erechim/RS (2004). Autor do livro Teatro de se Ler: o texto teatral e a formação do leitor. Diretor de Teatro. Contato: tadeugraz@yahoo.com.br

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Obs.
Artigo inicialmente publicado na Revista Digital Art&, v.8, 2007.