O livro começa a fazer parte das horas de lazer. Foto: Natanael Guedes

Rosa Riche simulou até o julgamento de um personagem. Foto: Ricardo Serpa.

Matéria Publicada no Jornal do Brasil, Caderno Ideias
Por Eliane Bardanachvili – Rio de Janeiro – 16.09.1990

 

 

 

 

 

 

 

 

Barra de Divisão - 45 cm

Alfabetização só tem Sucesso se Valorizar a Leitura

O Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania do governo foi anunciado na semana passada para um país em que se lê pouco – a média é de um livro publicado por pessoa anualmente, contra seis ou sete nos países europeus -; e o acesso ao livro é difícil – há apenas três mil bibliotecas públicas no país, para 4.700 municípios, quando o ideal seria haver uma por bairro. Programas para baixar o índice de analfabetismo descasados de programas de leitura serão ineficazes, afirmam especialistas da área.

Mais do que a decifração de signos gráficos, alfabetizar significa fazer compreender a língua, o que só é possível com a prática da leitura. O contrário também é verdadeiro: “É mais fácil fazer alguém gostar de ler quando foi bem alfabetizado porque as pessoas que gaguejam quando leem veem a leitura como um castigo”, ensina a professora Maria Inês Zocchio, encarregada da sala de leitura da Escola Professora Áurea Ribeiro Xavier Lopes, em São Paulo.

Facilitar o acesso ao livro, com bibliotecas em todas as escolas, apresenta-lo à criança de maneira atraente são as chavez para o sucesso na alfabetização e na fixação do hábito de leitura, diz a linguista Eliana Yunes, ex-diretora da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil.

“A leitura é apresentada na escola como disciplina, quando ela é justamente o oposto, uma insubordinação do ensamento, diz. “Se a pessoa rejeita a leitura, todo o caminho que vai trilhar será um peso, tudo o que implique ler terá maus resultados. Isso se refletirá também na vida profissional, na dificuldade de dar sugestões, propor coisas novas.”

O desinteresse pela leitura faz vítimas não só nos estudantes de baixa renda da rede pública, mas também nos mais bem-aquinhoados alunos da rede particular. Sanar isto, só mudando a relação do professor com o livro, acredita Eliana
Yunes. “Num programa de alfabetização, a primeira necessidade é tornar o professor um leitor, rever toda a relação da alfabetização com a leitura desde a escola normal”, propõe Eliana.

Para ela, todo ensino de 1º grau deve se basear exclusivamente na literatura, começando-se por contar histórias. “A história oral vai dar à criança a noção de início, meio e fim, de causas e consequências”, diz.

Qualquer contato da criança com livros é importante. Antes de chegar aos clássicos, é valido que ela se interesse pela variedade de títulos – cerca de 10 mil, hoje, segundo cálculo das editoras – jorrada no mercado anualmente, dirigidos a crianças e adolescentes, trazendo textos fáceis e ilustrações atraentes. “É preciso ler os clássicos, mas não se pode espantar o freguês”, explica Sonia Kheder, professora do curso de Letras da UFRJ. “Numa sociedade facilitada, os
clássicos podem soar incompatíveis com os códigos conhecidos pela criança”, diz.

Vale tudo para revelar o livro

Experiências bem sucedidas em escolas e cursos livres provam que é possível despertar o interesse pela leitura através de atividades como debates, criação de histórias e dramatizações, que facilitem o contato da criança com o livro e o tornem tão sedutor quanto a televisão, o computador, o videogame e outros atrativos tecnológicos.

Há dois anos, a direção da Escola Estadual Helena Pugó, na periferia de Recife, incluiu as visitas à biblioteca na carga horária do 1º grau. Cada turma passou a dedicar um dia por semana à leitura dirigida, com interpretação de texto e atividades lúdicas, como criação de histórias, pinturas e peças teatrais improvisadas. Desde então a frequência espontânea à biblioteca cresceu de 50 visitantes por dia para 300.

A intimidade com os livros na biblioteca reflete-se na sala de aula. “Há dias em que quero adiantar o programa de matemática e as crianças cobram as historinhas”, conta a professora Cleide Lopes. “Com os livros, estamos despertando a curiosidade das crianças em todas as atividades”, diz ela.

A criação de uma carga horária específica para a leitura foi também a opção da Escola Municipal Humberto Castelo Branco, em Belo Horizonte, onde a maioria dos alunos trabalha para sobreviver. Introduzida no currículo escolar da 5ª a 8ª série, a disciplina Literatura Infanto-Juvenil não conta pontos para aprovação. “A gente trabalha o prazer da leitura”, orgulha-se a professora Áurea Regina Damasceno, que conseguiu fazer da biblioteca o local mais frequentado da escola. De lá, os alunos chegam a retirar 200 livros  nos fins de semana. Áurea sonha transmitir aos alunos a capacidade de fazer uma leitura crítica, mas por enquanto contenta-se em fazê-los primeiro descobrir o prazer de ler.

Fantoches

Para revelar o prazer da leitura, vale tudo. Em São Paulo, a professora Maria Ellenice Salla, encarregada da sala de leitura da Escola Municipal João Pinheiro, em Vila Matilde, um bairro de classe média baixa, recorre aos fantoches Marronzinho, Maria Chupeta e Lambão, para atrair as crianças de 1ª à 4ª séries. Marronzinho é um macaco que tenta contar uma história, mas há sempre um personagem que o impede de concluí-la. O jeito é ir matar a curiosidade no livro onde o macaco “leu” a história.

Ellenice também usa origamis, a arte japonesa de dobrar papéis. Cada dobradura representa uma parte da história que os alunos ajudam a criar e o resultado final é sempre um personagem.

Tarefa Árdua que Compensa

Tornar a leitura atraente é tarefa árdua. Que o comprovem as crianças que participam das experiências que têm esse fim. A relação com a leitura muda para melhor, mas acabar com as restrições é uma conquista lenta. “Não gostava nem de ver livro na minha frente. Agora estou começando a querer ler um pouco”, conta Leandro Bastos Lodi, 13 anos, na 4ª série da Escola Municipal Lourenço Filho, no Rio, e cursando a Oficina da Palavra. “Aqui a gente conversa, dá ideias e se falar errado ninguém ri, como acontece na escola”, explica o colega Rodrigo Marques Taboaço, 11 anos, do Colégio São José. Também na oficina, ele diz que ainda não gosta muito de livro, mas já lê sem gaguejar.

Márcia Rodrigues dos Santos, 10 anos, na 3ª série da Escola Estadual Helena Pugó, em Recife, tornou-se uma das frequentadoras mais assíduas da biblioteca da escola, no intervalo das aulas. “Como não posso ter historinhas em casa, venho todo dia aqui”, explica. Márcia devora três livros por semana, mas com uma ressalva: “Só não leio os que têm muitas páginas, porque me complico”. Na mesma turma, Mário Ribeiro dos Santos, 9 anos, não se atreve a pegar livros com mais de 20 páginas. “Gosto mais desses com poucas letras e bem grandes”, especifica.

O camelô Domingos Lima Brito, 14 anos, aluno da 6ª série da Escola Municipal Humberto Castelo Branco, em Belo Horizonte, havia decidido não ligar muito para a disciplina de Literatura Infanto-Juvenil, que não valia nota para prova. Aos poucos, foi mudando de ideia.

“Comecei a ler livros fininhos. Agora já leio livros com mais de 100 páginas”, vangloria-se Domingos, que costuma levar livros da biblioteca da escola para as irmãs. Já o office-boy Luís Fábio Mota, 15 anos, carrega livros de histórias infantis para ler no trabalho, nos horários de folga.

A preferência dos alunos pelos livros mais finos, mais ilustrados, com histórias fáceis de compreender é válida, na opinião da professora Áurea Damasceno, da Humberto Castelo Branco. “É preciso acabar com o preconceito de que há uma literatura para cada idade. Temos que deixá-los ler o que gostam”, recomenda.