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Em seu ensaio Da Necessidade do Teatro (O Teatro em Portugal, Lisboa: Edições 70, 1989), o poeta e escritor português Jorge de Sena recorda que é apenas por hipótese que muita gente nunca viu uma representação teatral. Apenas por hipótese, garante o autor, uma vez que para existir não existe quem não represente. Não existe sociedade ou grupo humano que sob algum aspecto não pratique de alguma maneira a personificação dramática: essa necessidade humana de nos supormos outroUm outro que, mesmo estando sujeito aos caprichos dos deuses e do destino, como as mais antigas personagens teatrais, é sempre mais poderoso, mais seguro, mais livre, mais liberto das contingências e das sujeições de toda a espécie, que nós mesmos. Tudo porque essas personagens possuem uma liberdade especial: a liberdade de recusar o reconhecimento de ser justiça o que sofrem. 

Para Jorge de Sena, Quando pela primeira vez o homem se recusou a reconhecer como justa e inevitável a iniqüidade seja de que ou de quem for, nesse mesmo momento ele criou o teatro, fundou sua independência estética e surgiu como personalidade humana fora da sociedade em que se realizava. Para o poeta, a necessidade que persiste em tantas brincadeiras infantis de nos supormos outro, de nos imaginarmos alguém capaz de fazer aquilo que nos exigem socialmente, transformou-se na capacidade de criar, na capacidade crítica através da qual a humanidade, buscando distinguir o que importa preservar e o que importa destruir ou abandonar, procura seguidamente se libertar: pelo teatro e não pelo progresso.

Claro que a diferença entre a necessidade individual de personificação e o teatro é gigantesca. O teatro – bem o sabemos – traduz uma forma artística elaborada cuja singularidade reside no fato de ser uma manifestação criativa, viva e coletiva. O fenômeno teatral desaparece sempre que traduzido em outras formas artísticas, ou não. Não resiste sequer à forma literária da qual – quase sempre – se origina. O fenômeno teatral é, na verdade, o resultado crítico combinado de diferentes elementos que integram uma totalidade articulada onde palco e plateia são ao mesmo tempo condição e resultado desse próprio fenômeno. Razão pela qual, como disse Thomas Brasch, o teatro traduz a forma mais pública de apresentar e assistir arte.

Nosso mundo, fundado na ideia de progresso. Nossa sociedade, ininterruptamente globalizada em espetáculos de violência, grandeza e miséria (sem querer fazer jogo de palavras, mas já o fazendo), parece ter feito do teatro uma arte superada: fora do tempo e da realidade. Há, por essa razão, quem julgue ser o teatro uma forma artística anacrônica, incapaz de acompanhar o ritmo de um tempo que ocupa nossos sentidos sem que possamos dar conta dos nossos próprios gestos.

A questão parece residir aí. Talvez essa incapacidade seja a esmagadora e terrível verdade que transforma o teatro em uma necessidade que talvez nunca tenha sido tão imperiosa. O teatro não tem o ritmo dos modernos meios de comunicação. Não tem, não deve e nem precisa ter. Seu tempo pertence a outra realidade. Pertence à realidade da criação, da invenção, do prazer das descobertas. Pertence à realidade do teatro. Uma realidade sem a qual nossa própria realidade parece perder sentido. Cada vez mais!

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Eduardo Montagnari
Prof. e Doutor em Sociologia e Diretor de Teatro na Universidade Estadual de Maringá, Paraná

Obs. Texto retirado da Revista FENATIB, referente ao 1º Festival Nacional de Teatro Infantil de Blumenau (1997)