Crítica publicada na Tribuna de Imprensa
Por Cecília Loyola – Rio de Janeiro – 02.04.1988

Barra

Teatro por si mesmo

As folhas mortas, que o vento do norte carrega, na noite fria do esquecimento…

A melodia de Les Feuilles Mortes, ao som do piano ao vivo, abre o espetáculo Uma Peça por Outra, de Jean Tardieu, pelo grupo Tapa, no teatro da Casa de Cultura Laura Alvim.

A canção, imortalizada por Yves Montand, é símbolo das lembranças da guerra. Cantada nos cabarés e nas escolas, quer se sobrepor ao eco ainda presente das bombas e à sombra dos mortos mal enterrados. Mas o vento do norte carregou as lembranças desta Europa que acreditava no próprio gesto todo poderoso de construção do Destino. E, assim, o que temos é um homem estarrecido diante da Consciência feita em pedaços.

No Teatro, entretanto, vai nascendo um outro gesto: o Épico. Walter Benjamim, em seu ensaio sobre Brecht, chama atenção para o fato de que o teatro épico é gestual. “Quanto mais frequentemente interrompemos o protagonista de uma ação, mais gestos obtemos.” Tomado desta forma, o palco ganha uma consciência inédita e torna-se um lugar livre para experimentar os elementos da realidade.

Ao assumir o gesto do teatro épico sobre o material estilhaçado do pós-guerra, o diretor Eduardo Tolentino repõe em cena a tensão do Homem Moderno. Escolheu, bem a propósito, o autor Jean Tardieu, nascido em 1903 e cuja obra, naturalmente, atravessa todo esse desencantado período europeu. Como Alfred Jarry, Tardieu tem uma aguda consciência das urgências teatrais modernas e as revela em seus vários textos cômicos, dos quais Tolentino lança mão nesta feliz montagem. Para uni-los, em cena, além dos entrechos musicais, há a figura de um narrador assumindo diferentes posturas e intervenções no decorrer da peça e brilhantemente interpretado por Charles Myara.

A encenação do primeiro texto, por exemplo, permite não somente a reflexão sobre um gênero anacrônico, mas também a maneira pela qual esse gênero se perpetuou em nossos palcos. Através de uma interpretação em que se mesclam gestos teatrais antiquados e o intimismo naturalista próprio à televisão, a sátira se realiza plenamente.

O final do espetáculo dá um testemunho inegável de como um autor pode ser iluminado por outro, independente de ser anterior ou posterior: entra em cena uma interessante releitura de Tardieu via Beckett.

O elenco tem o frescor da intimidade que só o trabalho em grupo pode proporcionar: o diretor explora a potencialidade dos atores naquilo que eles têm de melhor. Denise Weinberg, Brian Penido, Guilherme Sant´Anna, Ernani Moraes dão testemunho disso. Eliana Fonseca mostra um trabalho cuidadoso, especialmente na cena final. E Clara Carvalho, sem dúvida, é uma presença marcante por todo o espetáculo.

Os figurinos de Lola Tolentino se revelam mais do que apoio, uma intervenção criativa na montagem.

O grupo Tapa não demonstra apenas maturidade no seu trabalho. Acima de tudo, se coloca como uma das perspectivas concretas, no eixo Rio-São Paulo, do Teatro que sabe de si. E se a Constituinte retarda a nossa entrada jurídica na modernidade, o teatro está apontando como chegaremos lá.